Mateus 27.46b

Mateus 27.46b

REFLEXÕES PARA O ÚLTIMO DOMINGO APÓS EPIFANIA | 19 de fevereiro de 2023 | Harald Malschitzky |

“Eli, Eli, lema sabactani?” Essas palavras querem dizer: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mt 27.46b).

Quem sou eu? “Inquieto, saudoso, doente, como um pássaro na gaiola, respirando com dificuldade, como se me apertassem a garganta, faminto de cores, de flores, do canto dos pássaros, sedento de palavras boas, de proximidade humana, tremendo de ira por causa da arbitrariedade e ofensa mesquinha, irrequieto à espera de grandes coisas, em angústia impotente pela sorte de amigos distantes, cansado e vazio até para orar, para pensar,  para criar, desanimado e pronto para me despedir de tudo?”.  (Dietrich Bonhoeffer)

Harald Malschitzky

Irmãs e irmãos, amigas e amigos.

Eu arrisco fugir dos textos bíblicos e do tema previstos para o último domingo após Epifania.  Quero me aliar e solidarizar com muita gente que se pergunta pela ausência de Deus nos momentos tão tenebrosos  pelos quais o mundo passa,  e com aqueles que já jogaram a toalha da fé enveredando, quem sabe, por um ceticismo radical e sofrido.

Onde está Deus em sucessivos terremotos que já mataram em torno de 30 mil pessoas e deixaram ao relento e no frio muito mais gente? Temos respostas científicas sobre a formação de terremotos, mas não temos a resposta do porquê, a resposta última pela morte e sobrevivência precária de populações inteiras. Deus nos abandonou? Não bastasse a catástrofe natural,  ainda continua acesa a chama  o ódio e da guerra, em nome dos quais grupos tentam impedir ou no mínimo dificultar a chegada de ajuda humanitária para as necessidades primeiras dos sobreviventes.

A estupidez da guerra na Ucrânia já não tem nome: Morte, destruição, miséria, fugitivos ao desconhecido. De ambos os lados as juras de que se quer a paz e de ambos os lados se busca aumentar o poder bélico. O desfile pomposo de líderes eclesiásticos não precisa significar a presença de Deus! Mas, de repente, diante dos terremotos, ambos os países oferecem ajuda humanitária para salvar vidas! Ao mesmo tempo, porém, recrudescem a guerra, o ódio, o poder bélico. Deus, um discurso vazio em ambos os lados?

E no Brasil deveríamos estar perplexos pela situação criminosa de descaso com os povos  originários, no momento os Yanomamis, desprovidos de suas matas, envenenados pelo mercúrio e outros produtos usados na busca do vil metal. Agora há esforço e empenho grandes para cuidar da saúde dos indígenas e salvá-los da morte prematura e para cortar o mal pela raiz: Impedir terminantemente o garimpo naquelas terras. Garimpeiros fogem, são retirados, são detidos, aviões, máquinas combustível, tudo é destruído. No entanto, muitos deles já desembarcaram em outra área para novo garimpo. Em noticiário do dia 9.02.23, um líder garimpeiro declarou que, passados dois meses, tudo volta ao “normal”. A ganância fala mais alto! A vida, a flora e a fauna não interessam diante do fascínio do metal.

Diante desses três cenários reais volta o grito: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” E é de compreender quem não mais aguenta ver e viver tanta desgraça, injustiça e estupidez.

Não temos resposta para o “silêncio” de Deus diante das catástrofes naturais. Mas temos tentativas de ler a maldade, a violência e a  truculência dos seres humanos. … “é mau o desígnio íntimo do ser humano desde a sua mocidade” (Gn 8. 21b). E ali mesmo Deus assume o compromisso de não mais castigar a terra pelas maldades humanas (Gn 8. 21a), o que ele confirmaria no Cristo que, na cruz, se viu abandonado por Deus.

No entanto, isso não responde à pergunta pela ausência de Deus. Me parece que ele só pode ser encontrado em pessoas, encarnado em gente, assim como Jesus se tornou carne e habitou entre nós (Jo 1. 14) e foi encontrado no meio das pessoas, cuidando, entre outros de suas dores. Me parece que aqui há uma pista: Neste momento, nos cenários mencionados e em tantos outros, Deus está presente nas pessoas, naquelas pessoas que, à revelia de sua saúde e segurança, estão buscando vivos e mortos nos escombros  da Turquia e da Síria, que levam mantimentos também sob o risco de vida; Deus se faz presente nas pessoas que socorrem ucranianos com um mínimo para sobreviver ou que os recebem aos milhares como refugiados em seus países; Deus se faz presente nas pessoas que se embrenham na floresta para salvar os yanomamis e destruir a estrutura mortal do garimpo, que em busca do metal, destrói e mata povos inteiros, roubando-lhes a identidade e as condições de sobrevivência e a dignidade. Espíritos puristas talvez levantem a crítica de que nem todos – talvez a maioria – que socorrem, que ajudam, se empenham, nem são cristãos.  Exatamente, Deus se faz presente nas pessoas, suas criaturas, que colocam sua vida e seus dons à disposição da vida de outros sem nada pedir, sem recompensa esperar. Para dizê-lo em palavras mais bonitas: “Quando o pão que partilhamos florescer como uma rosa e a palavra que dizemos ressoar como um cântico, então Deus já terá construído sua morada entre nós, então ele já estará morando em nosso mundo. Sim, aí veremos o seu semblante no amor que tudo abarca” (Claus-Peter März). Deus quer morar  no mundo e não em lugares supostamente sagrados. Essa afirmação levanta outra pergunta: Será que Deus sempre está presente nas igrejas, leia-se, em seus membros?

Finalmente mais duas coisas: Um profundo lamento pelo que está acontecendo, um lamento diante de Deus que parece que está ausente e, diante do mesmo Deus,  um agradecimento pelas milhares – ou serão milhões? – de pessoas que não desistem de ajudar à vida, à revelia de todas as forças contrárias.

Que  o Deus que parece ausente nos revele suas pegadas no mundo sofrido e sofredor e nos faça seguir essas pegadas. Amém

  1. em. Harald Malschitzky

São Leopoldo – Rio Grande do Sul (Brasilien)

harald.malschtzky@gmail.com

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