14º DOM. APÓS PENT.

14º DOM. APÓS PENT.

PRÉDICA PARA 0 14º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | 29.08.2021 | Texto bíblico: Deuteronômio 4.1-2, 6-9 | Felipe Gustavo Koch Buttelli |

 VERDADEIRA LEI É O AMOR

 Que a graça e a paz de Deus, o amor de Jesus e a comunhão do Espírito de sabedoria esteja com você. Amém

Cara irmã, caro irmão em Cristo,

Nossa leitura para a pregação de hoje apresenta uma fala de Moisés, em Deuteronômio 4, na qual ressalta a importância e o benefício para o povo do cumprimento da Lei, recebida no caminho do deserto no monte Sinai. Lei que se tornou o fundamento da fé judaica e que edificou e orientou a vida do povo judeu já no seu tempo de deserto, mas também posteriormente, após a tomada ou conquista da terra prometida de Canaã.

Nós, pessoas cristãs, sobretudo de tradição luterana, temos por prisma, por lente interpretativa da lei de Moisés a revelação em Jesus. Não somos mais salvos pelo cumprimento da Lei, mas pela morte de Jesus Cristo na cruz que cumpre e abole a lei como meio de justificação diante de Deus. Como sabemos, somos justificados por graça, mediante a fé em Jesus e na sua obra redentora.

No entanto, não podemos descartar o valor para a nossa fé do testemunho do Antigo Testamento, afinal de contas, continua presente em nosso cânone e tem profundo valor para a edificação da nossa fé. A pergunta e o desafio para nós é: como lê-lo e compreendê-lo hoje, à luz da revelação em Jesus Cristo. Ler o Deuteronômio hoje, sem passar pelo filtro, pelo crivo da revelação de Deus em Cristo, pode nos levar a um legalismo anacrônico, o que, de fato, acontece hoje em muitas igrejas e práticas contemporâneas. Ler a Lei de Moisés, considerada sobretudo no sentido que teve para o contexto de vida do povo judeu, e ressignificar através da nossa interpretação cristã, pode nos ajudar a compreender o evangelho de maneira ainda mais profunda.

Deuteronômio realiza a fusão entre dois horizontes: O primeiro é da tradição dos patriarcas e da libertação do povo do Egito, através da condução de Moisés, figura central para a fé judaica. O segundo horizonte é proveniente de um “futuro”, já incluindo a experiência do povo na terra de Canaã, a partir da conquista e da constituição da sociedade judaica em sua sedentarização na Terra de Israel, descrita nos livros históricos (Josué, juízes, Rute etc.). O Deuteronômio tem, portanto, a finalidade de valorizar a narrativa do passado e de orientar o caminho no futuro, mantendo a centralidade do valor da Aliança com Javé, com Deus, através da Lei. Percebe-se aqui o valor fundamental da Lei: ela preserva a identidade, relembra da história da revelação de Javé ao seu povo, da constituição da Aliança, da libertação do Egito e da condução no deserto até a terra prometida. A morte de Moisés simboliza a transição da experiência do povo judeu, que construirá na nova terra uma sociedade que precisará se basear em valores éticos e normas de conduta que preservem a justiça, a igualdade e o amor entre as pessoas.

No texto da pregação encontramos alguns elementos que ressaltam isso. Nos versículos 1 e 2, Moisés ressalta que a conquista da terra é fruto do cumprimento da Lei, que realiza a promessa feita por Deus ao seu povo, caso permanecesse na Aliança. É a Aliança que garante a terra – em que o povo já habita – e a Lei é a forma correta e contínua de permanecer na Aliança. No versículo 6, Moisés aponta para o caráter distintivo que a Lei assegura ao povo Judeu. Viver na Lei mosaica garantia um destaque ao povo judeu, um padrão de convívio social distintivo que denotava “sabedoria e inteligência”. No versículo 7, Moisés ressaltava que viver na Lei garantia a presença de Deus junto ao povo. Ou seja, para que a nova experiência social funcionasse e fosse abençoada por Deus, os critérios de justiça, de igualdade e de amorosidade no convívio, estabelecidos pela Lei, deveriam ser mantidos. Por último, no versículo 9, o cumprimento da Lei assegurava a manutenção da identidade, a preservação da história, a memória acerca da bondade de Deus, que escolheu seu povo, se revelou, libertou da escravidão e trouxe à terra que garantiria a prosperidade na vida. Como se diz no ditado popular, não se pode olhar para o futuro sem saber do passado.

Este era o valor da Lei em seu contexto origina. E qual seria o valor desta mensagem para nós, hoje?

Jesus em sua vida teve um duplo relacionamento com a Lei. Por um lado, ele veio para cumprir a lei. Logo no início do Sermão do Monte Jesus afirmou: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.” (Mt 5.17s). Mais do que isso, Jesus veio para radicalizar o cumprimento da Lei, compreendendo-a em seu verdadeiro espírito, que em muito excedia o rigorismo de um cumprimento formal e protocolar de normas escritas no papel. Ainda no Sermão do Monte, quando interpretava esta Lei, Jesus radicalizava o sentido dela, chegando ao ponto da quase incapacidade de qualquer ser humano de realmente cumpri-la. Assim ele concluía “Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.” (Mt 5. 48).

Por isso, a segunda forma de entender a Lei por Jesus é, de fato, a da misericórdia. Ele sabe que o legalismo judaico de seu tempo era na verdade caracterizado pela hipocrisia. A Lei de Moisés, que teve tão nobre finalidade no contexto de Deuteronômio, se tornou anacrônica, irrelevante para o seu tempo, porque era vivida de maneira hipócrita e servia para uma diferenciação hierárquica entre as pessoas, a qual Deus mesmo nunca faria. Por isso, Jesus mesmo descumpria esta Lei em diversos momentos, como quando colhia espigas no sábado, dia do descanso, por exemplo. A Lei não serve para matar ou para destruir a dignidade humana. Tampouco para criar um sistema religioso elitizado e hipócrita, que excluía muito mais do que gerava senso de inclusão e de coesão na sociedade, que já em sua época havia se tornado profundamente desigual e injusta econômica, social e religiosamente. Por isso, lhe coube resignificar a Lei e atribuir-lhe o verdadeiro espírito e fundamento. “Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros”. (Jo 13.34)

Não há uma nova lei, mas uma nova forma de cumprir, de fato, a Lei, realizada na vivência de seu verdadeiro espírito que é motivado pelo simples amor. E o amor de Deus, revelado em Cristo, foi tão radical em seus limites que, por sua morte e ressurreição, quebrou o poder da Lei, instituindo o perdão e a misericórdia como manifestação da graça de Deus para nós, de modo que não mais precisamos cumprir a Lei para vivermos reconciliadas com Deus.

Caras irmãs e caros irmãos, não seria essa uma forma também de questionarmos todo legalismo que existe hoje? Toda cultura de intolerância e violência que se utiliza da bíblia como arma de destruição, de agressão. Não à toa, os cristãos mais intolerantes hoje são aqueles que se valem da Lei de Moisés para excluir e condenar pessoas que, em sua concepção, se desviam da sua moral hipócrita, tal qual aquela vivida pelos fariseus no tempo de Jesus. Precisamos recuperar o sentido profundo e verdadeiro da Lei de Moisés que parte de seu contexto originário, ao invés de anacronicamente aplicar um legalismo que é vão e sem sentido para o nosso tempo. Jesus nos dá condições de compreendermos o verdadeiro sentido da lei, assim como Moisés o havia feito ao seu povo no seu tempo. A Lei, a Palavra de Deus, nos serve para permanecermos em unidade, resguardarmos nossa fé e nosso relacionamento com Deus, mas acima de tudo, ela serve para construirmos uma vida em sociedade em que prevalece a justiça, a igualdade e o amor solidário, na qual ninguém é excluído. Só neste momento, quando recuperarmos uma visão profunda sobre o significado da Lei e da renovada Aliança de Deus em Cristo conosco, que realmente entenderemos porque Jesus veio ao mesmo tempo cumprir a verdadeira lei e aboli-la por inteiro, já que a verdadeira lei que Deus nos concede é a vivência do amor.

“Lâmpada para os meus pés é a tua Palavra, Senhor, e luz para o meu caminho. Amém”

P. Dr. Felipe Gustavo Koch Buttelli

Goiânia/Goiás (Brasilien)

felipebuttelli@yahoo.com.br

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