2º Domingo na Quaresma

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2º Domingo na Quaresma

Gênesis 12:1-4a | Roberto E. Zwetsch |

Prezada comunidade de Jesus, irmãs e irmãos na fé,

Histórias antigas como esta que ouvimos do Gênesis são encantadoras. Se as escutamos com atenção, fazem com que viajemos pelo mundo da utopia, da fantasia, do milagre. E na comunidade cristã dos nossos dias não seria diferente. Ainda assim, esta e outras narrativas do Gênesis nos causam certo constrangimento, considerando a nossa experiência histórica como gente da cidade, como pessoas completamente inseridas num outro mundo do que aquele de Abrão, de sua família e dos seus interesses mais imediatos.

Assim, proponho que nos acheguemos a essa história – em parte bem conhecida para quem lê a Bíblia ou frequenta a igreja desde a infância – com certa estranheza. Que história é essa de sair da terra, deixar a família paterna e toda a parentela, e ir em busca de uma outra terra, um outro lugar para viver e constituir um povo? Não parece uma utopia desmedida para um criador de ovelhas e cabras e que vinha de uma experiência de migrantes pelas planícies do Oriente, entre a Mesopotâmia e o Egito?

Para captar algo da mensagem dessa história precisamos ler e reler o texto com cuidado. Procurar seu sentido nas palavras e por trás das palavras, como escreveu certa vez Carlos Mesters, um famoso biblista no Brasil. É que uma leitura atenta poderá nos ajudar a perceber, mesmo em diferentes traduções, que aqui temos dois tipos de linguagem, mas que se completam. A primeira frase é tipicamente um exemplo de prosa, pois conta o início de uma caminhada. Aliás, seria importante voltar ao final do capítulo 11 para constatar que esta ordem que Javé, o Deus do futuro Israel, dá a Abrão, já havia sido dada ao seu pai, Terá. Terá tivera três filhos: Abrão, Naor e Harã. Foi Terá que recebeu pela primeira vez a ordem de sair da terra de Ur dos caldeus para ir à terra de Canaã.

Abrão deu continuidade a esta busca. Ele é filho de migrante e depois também continuará esta tradição. A história do capítulo 12 nos leva da Mesopotâmia para a terra de Canaã, mas como houve fome nesta terra, o clã de Abrão seguiu adiante e foi rumo ao Egito. Só depois retornou à Canaã. Mas atenção: a mensagem de Javé chega a essas pessoas não num templo como este, mas na caminhada, mais ou menos como testemunham seguidamente hoje em dia no Brasil pessoas cristãs que participação do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) ou as pessoas de fé que fazem as famosas Romarias da Terra no Brasil. Suas celebrações são magníficas e de longe superam nossos cultos ou eventos realizados em espaços seguros como templos e catedrais.

Isto nos adverte que a mensagem do texto tem a ver com migrantes, com gente que caminha muito, vai longe, não tem segurança, vive na dependência de encontrar bons pastos para os seus rebanhos de animais pequenos, portanto, uma história maravilhosa, mas de gente pequena, que depois vai acabar – no olhar dos redatores da narrativa – enfrentando o poderoso imperador do Egito, o faraó.

É no meio dessa história de um grupo de migrantes que vamos ouvir palavras de bênção e palavras de promessa. Na verdade, se trata de uma bênção que tem a ver com descendência, com filhos e filhas e de uma promessa de sobrevivência digna: a terra. O pastor brasileiro

Milton Schwantes, grande exegeta do Primeiro Testamente, escreveu que nesta parte do Gênesis (de 11.27 até 12.20) temos a reafirmação de duas dimensões inseparáveis da fé do povo de Deus: terra e dignidade. Para que um povo possa viver com dignidade é preciso ter acesso à terra, ao campo para cuidar dos pequenos rebanhos e à terra de agricultura para produzir grãos que vão alimentar as pessoas. De preferência, a agricultura sustentável, orgânica, que não utiliza venenos.

A gente poderia dizer para as pessoas de hoje em dia o seguinte: para que uma família viva com dignidade, é preciso ter possibilidades de trabalho e condições de sustentar a família com relativa garantia de alimentação saudável, reconhecimento público e solidariedade coletiva. Um povo que se preza não pode dispensar estes direitos básicos para todas as pessoas, de modo especial, para as mais vulneráveis e sem recursos, objetivos democráticos que aliás devem estar registrados nas Constituições dos nossos países.

Pois bem, ocorre que na segunda parte da história temos uma nova forma de linguagem que se assemelha à poesia. É justamente a parte que fala da bênção, estranhamente vinculada a uma aspiração nacionalista: “de ti farei uma grande nação e te abençoarei e engrandecerei o teu nome”. Não parece a vocês que este tipo de linguagem é típica para aspirações imperialistas? Hoje em dia temos algumas grandes nações, com poderosos exércitos espalhados pelo mundo, que pensam apenas em engrandecer o seu nome, isto é, o seu poder, desprezando as nações pequenas e submetendo-as aos seus interesses políticos, econômicos e culturais. Será que é deste tipo de “bênção” que a história de Abrão estaria falando? A frase parece uma conhecida inserção num relato muito antigo.

Ora, esta é uma das razões para a gente ler e reler o texto com paciência. E meditar sobre o que ele diz. Por isso, uma boa tradução, de quem conhece a língua hebraica, a língua original da tradição de onde procede a narrativa, é muito importante. Só tal tradução, a mais fiel possível ao texto antigo, pode nos ajudar para alcançarmos uma compreensão nova ou mais justa dessa história bem conhecida.

Então, é interessante observar que junto com a bênção vem também a maldição. A voz de Javé afirma: “Sê uma bênção! Abençoarei os que te abençoarem e os que te amaldiçoarem, eu amaldiçoarei”. Vejam que o texto bíblico é duro, não enfeita as relações conflituosas que se dão no cotidiano da vida e da história. Quem poderá ser objeto de tamanha maldição? Especialmente, depois daquelas palavras grandiosas que apontam para uma nação poderosa que deverá surgir no futuro?

Não é fácil de responder. Por isso, aqui temos de ser cuidadosos. Há um evidente conflito de interesses no texto. E este interesse coloca em confronto gente pequena, migrantes que vivem de cuidar e negociar rebanhos de pequenos animais, pequenos negócios. Isto é, gente que precisa caminhar muito sempre em busca de bons pastos e água, isto é, de sua sobrevivência. Mas, como os capítulos seguintes irão mostrar, estes migrantes que saem em busca de uma nova terra, a terra de Canaã, terra da liberdade, terra da paz, do shalom, terão de enfrentar poderosos, no limite, o próprio faraó, imperador do Egito, o pretenso dono de todas as terras.

Então, Abrão toma sua família, o sobrinho Ló e sua família, e o grupo ampliado sai da terra de Harã e vai para um lugar desconhecido, mas por isso mesmo lugar de promessa, lugar de esperança, lugar da utopia. Nessa caminhada Abrão, o patriarca, recebe a promessa: “em ti serão benditas todas as famílias da roça!” Surpreendente esta última palavra, que encontrei na bela tradução do pastor Schwantes. Ele explica que a palavra hebraica do original não se refere a uma “terra genérica”, como se fosse um símbolo da humanidade ou a terra dos poderosos. Não se trata disso. Aqui a bênção é prometida ao povo da roça, aos agricultores que trabalham

diariamente a sua terra de agricultura, a terra de plantio, a terra que produz alimentos saudáveis que alimentam a mesa de todas as pessoas. Jamais aquelas imensas terras submetidas à monocultura movida a máquinas, adubos químicos e venenos para produzir soja para a exportação. Este tipo de plantation, para me valer de um termo dos especialistas, nada tem a ver com a bênção da terra da roça feita a Abrão e sua família extensa.

Nessa diferenciação temos uma mensagem escondida no texto e que nos poderia fazer pensar, embora vivamos num contexto completamente diferente e distante do velho Abrão, da velha Sara e de sua parentela. O Deus Javé, o Deus do êxodo, pois esta história foi construída com os elementos típicos da história da libertação do Egito, este Javé libertador está aí falando para gente pequena, mesmo que às vezes vamos encontrar um Abrão que se imagina poderoso e até flerta acordos inconfessáveis com o verdadeiramente poderoso faraó egípcio, em troca da sua bela esposa, com o fim de enriquecer, de aumentar seus rebanhos e de voltar para Canaã como um homem grande, forte e famoso.

Entre bênção e maldição, há que escutar novamente o desafio que vem de Javé: “Sai do teu lugar, vence a tua acomodação, vai para a terra que mostrarei, confia mim e não te deixes dominar pelo medo do risco ou a força do império”. Ora, viver é sempre arriscado. E quem não está disposto a pôr os pés na estrada não chegará a lugar nenhum. Se isto vale para as pessoas, muito mais valerá para a comunidade cristã! Sair de si, eis uma dimensão irrecusável da missão cristã nos dias de hoje. Mas um segundo aspecto é tão importante quanto este. Na fala de Javé, que acompanha o seu povo, ouve o seu clamor e vê o seu sofrimento, há uma promessa no envio. Ele diz: “Eu te abençoarei e amaldiçoarei quem te amaldiçoar, mas saiba de uma coisa: em ti a bênção deverá incluir todas as famílias pequenas que vivem da roça, todos os pequenos deste mundo profundamente desigual e injusto”.

Em suma, sair, caminhar, tornar-se bênção para as pessoas ao nosso redor, começando pelas mais sofridas e esquecidas nos cálculos da sociedade afluente. Eis o desafio para tornar-se povo de Deus, povo de Javé, comprometido com a justiça restaurativa, com a terra libertada dos venenos, com a vida em plenitude de que falou muito mais tarde o profeta Jesus. Amém

 

P.Dr. Roberto E. Zwetsch
Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil
E-Mail: rzwetsch@gmail.com
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