Amós 8. 4-7

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Amós 8. 4-7

«As filhas e filhos da luz não são bons nos negócios » | Prédica para o 15. Domingo após Pentecostes | 18.09.2022 | Texto bíblico: Amós 8. 4-7 | Felipe Koch Buttelli | 

“As filhas e filhos da luz não são bons nos negócios”. Que frase estranha e, até certa medida, difícil de entender ou mesmo de concordar. Principalmente em um tempo em que a maioria das igrejas prega um evangelho da prosperidade, ou seja, se você for fiel, Deus lhe abençoará nos negócios e demais dimensões da sua vida. A prosperidade, o enriquecimento, bens e posses acabam virando, nessa teologia da prosperidade muito pregada no meio evangélico, um sinal de que você é uma pessoa abençoada. Deus está retribuindo sua fé com riqueza! Não à toa, as igrejas que enriquecem com essa teologia estão cheias de pessoas pobres e sofridas, que depositam na fé a sua esperança de ter uma vida social e econômica melhor, doando tudo o que têm sob a promessa de que Deus lhes devolverá abundantemente. Pobres coitados, acabam, na verdade, enriquecendo pastores desonestos e atribuindo louvores a pessoas corruptas, que expõem sua riqueza como se fosse bênção de Deus que transborda em suas vidas. Na verdade, estas igrejas, estes pastores e estes cristãos que ostentam sua riqueza como se fossem bênçãos de Deus, estão muito mais distantes do Evangelho de Jesus e da presença solidária de Deus do que aqueles e aquelas pobres marginalizados e sofridos, que clamam por algum tipo de salvação. Nós, na IECLB, temos que ter muito cuidado com esta teologia da prosperidade e permanecer vinculados ao que Lutero chamava de teologia da cruz: a grande vitória de Deus não está na vitória neste mundo. Jesus foi um condenado que morreu sob o poder do império e das lideranças religiosas de seu tempo.

O texto de Amós (8.4-7) previsto para hoje, somado ao evangelho de Lucas (16.1-13) nos oferecem uma crítica profundamente contestadora desta lógica triunfalista da fé. Amós é um profeta que viveu no antigo reino do Norte de Israel. Era um camponês, homem simples, que não pertencia ao círculo dos profetas da corte, que bajulavam o rei e as elites aristocráticas, nem os comerciantes notoriamente corruptos de seu tempo, que ostentavam riqueza. Pelo contrário, dava voz ao sofrimento do povo simples do campo, trabalhadoras e trabalhadores que sofriam sob um sistema social e econômico excruciante, desonesto, que levava muitas pessoas ao endividamento e à escravidão. Tudo isso acobertado por uma prática religiosa e uma piedade hipócritas e falsas, como nos diz o texto, “quem dera que a festa da Lua Nova já tivesse terminado, (…) como seria bom se o sábado já tivesse passado”, assim, poderiam voltar a suas práticas comerciais corruptas e injustas. O sábado e as ocasiões festivas religiosas, momentos de descanso, de dedicação de tempo para a comunhão, de tempo para edificar a fé e aproveitar os frutos do trabalho tornam-se um inconveniente que atrapalha os negócios. É uma obrigação religiosa enfadonha, que se cumpre apenas para envernizar uma prática religiosa hipócrita.

As palavras de Amós são duras. Nos versículos anteriores ao nosso texto, Javé chega a afirmar a Amós o seguinte: “Chegou o fim para o povo de Israel, que está maduro, pronto para ser arrancado como uma fruta madura. Nunca mais vou mudar de ideia e perdoá-los.” (Am 8.2). E, de fato, assim foi, pois após o tempo do profeta Amós, o Reino de Israel sucumbiu ao império Assírio. Amós traz uma palavra de juízo e aponta com muita clareza quais são as práticas recorrentes no contexto social e econômico de Israel que levaram Javé a anunciar sua destruição: Maltratavam os necessitados, exploravam os humildes, superfaturavam cereais, usando de medidas fraudulentas para vender mais caro, vendiam trigo que já não prestava mais, levavam o povo ao endividamento, davam empréstimos que, ao não serem pagos, levavam boa parte do povo pobre, como Amós, à escravidão. Javé, através do profeta Amós, promete a esta elite comercial corrupta: nunca me esquecerei do que vocês têm feito ao meu povo.

Qualquer semelhança com a realidade econômica e social de nosso mundo hoje, em especial do Brasil, seria mera coincidência?

Calcula-se que hoje cerca de 40% da população brasileira vive de trabalho informal. A reforma trabalhista, reforma da previdência e outras medidas econômicas, sob a alegação da crise econômica, levaram as pessoas a formas de subempregos. As pessoas pobres e fragilizadas diante das elites comerciais e econômicas são levadas à crença de que precisam se tornar empreendedoras e oferecem-se às poucas oportunidades de emprego como se fossem empresárias, apesar de ganharem, em sua maioria, não mais do que dois salários mínimos. Estes 40% de trabalhadoras e trabalhadores informais não dispõe de fim de semana, de férias, de licença saúde ou qualquer benefício ou direito trabalhista. Devem arcar com suas próprias desgraças porque não desfrutam de uma lei ou de formas de contratação que preservem sua dignidade. Finalmente se realizou aquilo que a elite de Israel esperava: Não mais precisamos guardar o sábado ou as datas festivas religiosas, o jogo continua e os lucros, para quem possui os meios, não cessam. O povo pobre paga a ostentação no mundo cada vez mais desigual, no país cada vez mais desigual em que vivemos.

Outro caso que lembra muito a descrição de Amós é a situação da escravidão no mundo contemporâneo. A Organização das Nações Unidas recentemente divulgou que há aproximadamente 50 milhões de pessoas em situação de escravidão no mundo hoje. Muitas delas trabalhando em situações degradantes para grandes grifes e empresas. Ou mesmo no trabalho doméstico, sem salário, sem folga, sem direitos e sem dignidade. Desumanizadas. Mês passado a Confederação Nacional do Comércio informou que 78% das famílias brasileiras estão endividadas. Oito em cada dez famílias, enquanto 29% têm contas atrasadas. E não se trata de dívida para adquirir bens ou imóveis, mas o povo está se endividando para comprar comida e pagar as contas. A dívida é certamente uma forma contemporânea de escravidão. Trabalha-se desesperadamente, quando se está empregado, para pagar dívidas, enquanto crescem os faturamentos dos bancos, do sistema financeiro, especuladores e investidores.

Não, não é mera coincidência que as palavras de Amós, apesar de duras, sejam tão atuais para nós hoje. São palavras proféticas para nós também. “Ouçam vocês”, diz o Senhor. Ele tem escutado o clamor do povo pobre e necessitado, tratado com corrupção e desonestidade, endividado, destituído de direitos, de descanso, de dignidade, escravizado. E promete seu juízo.

As palavras de Jesus, no evangelho de Lucas previsto para hoje, oferecem uma possibilidade de compreendermos como nós, pessoas cristãs, podemos viver neste mundo, nesta sociedade, de modo condizente com a nossa fé, vivendo e testemunhando em nosso modo de vida o convite de vida nova que ele nos faz. Certamente um modo de vida que discorda e contraria a lógica econômica e social da sociedade em que vivemos. Sempre me intrigou muito esta frase que Jesus diz: “— As pessoas deste mundo são muito mais espertas nos seus negócios do que as pessoas que pertencem à luz” (Lc 16.8). Adam Smith, um dos idealistas do capitalismo liberal afirmou certa vez: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse”. Para o autor, e diversos pensadores de sua época, noções como egoísmo positivo e ganância devem ser libertadas da moral religiosa, que as torna fonte de culpa. Assim, numa sociedade de pessoas livres gananciosas, todas se beneficiariam. Será mesmo? É isso que temos visto e experimentado em tantos anos de desenvolvimento deste sistema econômico? Jesus, na verdade, responde, em sua parábola do administrador desonesto, à realidade da ganância que levou o servo a desperdiçar e desviar recursos de seu empregador.

No entanto, a ameaça de demissão e o medo de ficar sem trabalho, levou o administrador desonesto a perdoar as dívidas de seus compradores por um preço muito mais baixo, de modo que angariaria empatia daquelas pessoas, que poderiam lhe oferecer hospedagem, quando estivesse desempregado. Este procedimento, dentro de uma mentalidade de negócios, não faz sentido. Quando a gente empresta recursos, cobra juros e recebe muito mais do que se empresta como lucro. Mas Jesus elogia o perdão da dívida, ou melhor, a negociação que torna o valor mais acessível aos devedores. O homem rico da parábola perdeu dinheiro, no fim das contas. Mas, ainda assim, Jesus considerou a atitude digna de elogios. Ainda que talvez pelas razões erradas, já que o administrador queria apenas garantir seu bem estar após a demissão. Mas seu gesto oportunizou às outras pessoas saírem da condição de devedoras, e gerou empatia entre o credor e o endividado. Para Jesus, as relações econômicas não têm outra função do que fazer amigos: “usem as riquezas deste mundo para conseguir amigos a fim de que, quando as riquezas faltarem, eles recebam vocês no lar eterno” (Lc 16. 9). Nada mais contrário do que a lógica que entende que tudo que fazemos deve gerar benefícios aos nossos interesses individuais.

Jesus sabia que isso contrariava as normas sociais e econômicas de seu tempo. Assim como contrariava a lógica cruel e exploratório do tempo de Amós. E é por isso que Jesus entende que os filhos e as filhas da luz nunca serão “os mais espertos” no mundo dos negócios. Porque cultivam valores de solidariedade e de justiça. De respeito à dignidade da outra pessoa, não colocando seus interesses de lucro acima do bem estar de sua irmã ou de seu irmão. Jesus resume este dilema da seguinte maneira: “Vocês não podem servir a Deus e também servir ao dinheiro” (Lc 16.13). Simples assim. Quem serve a Deus não diviniza o lucro e o capital. Quem serve a Deus, não incorre em práticas comerciais que prejudiquem as outras pessoas, que explorem os necessitados, que oprimam as pessoas pobres, que gerem endividamento e escravidão alheios.

Se quisermos ouvir e levar a sério o anúncio profético de juízo de Amós, temos que ser consequentes com o convite de Jesus. “Pois, se vocês não forem honestos com as riquezas deste mundo, quem vai pôr vocês para tomar conta das riquezas verdadeiras?”, diz ele. Nós, filhas e filhos da luz, sabemos que nossa riqueza não é deste mundo. Também sabemos que Deus não negocia com a nossa fé, não oferece bens, bênçãos e prosperidade para aqueles que nele creem. Pelo contrário, sabe que seus filhos e filhas nunca prosperarão realmente num mundo desigual e injusto. Viverão bem, talvez, à medida que perceberem que irmãos e irmãs que vivem necessitados, têm sua dignidade e seu bem estar respeitados. Se conseguirmos viver a nossa vida assim, talvez não fiquemos ricos, mas certamente poderemos ter esperança diante do anúncio de juízo profético que ouvimos hoje. Porque podemos sempre decidir se queremos servir ao dinheiro ou servir a Deus, confiantes na herança daquilo que tem valor verdadeiro e que Deus nos oferece por seu amor e graça.

Lâmpada para os meus pés é a tua Palavra, Senhor, e luz para o meu caminho. Amém.


P. Dr. Felipe Koch Buttelli

Goiânia – GO

felipebuttelli@yahoo.com.br

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