João 19. 16-30

João 19. 16-30

Prédica para a Sexta feira da Paixão | 29 de março 2024 | Texto bíblico: João 19. 16-30 | Breno Carlos Willrich |

A bíblia tem uma paisagem central, e essa é o Gólgota, dizia o P. dr. Lindolfo Weingärtner. Vale a pena repetir pra nunca esquecer: A bíblia tem uma paisagem central, e essa é o Gólgota. 

Sendo assim, quando lemos a bíblia nossos olhos não devem se distanciar de Jesus, especialmente do Jesus crucificado. Toda a leitura da bíblia, de qualquer parte dela, deve passar pelo crivo de Cristo. A pergunta que devemos fazer para entendermos a escritura é: “Como, a partir de olhar para o Cristo da cruz, podemos entender tal passagem bíblica?

Quem quiser conhecer o rosto de Deus não poderá deixar de olhar para a paisagem central, o Cristo do Gólgota. Lá, pendurado no madeiro, está o nosso Deus misericordioso. Quem deseja viver de forma coerente com o evangelho deve se deixar guiar pelo Cristo crucificado, afinal, “quem quer falar do amor, não poderá calar da cruz”. Quem espera alcançar a salvação e a vida eterna saiba que essas nos foram presenteadas pela morte daquele que levou sobre si os nossos pecados. Olhar para o gólgota é condição essencial para o fazer teológico e para a vivência da fé.

A celebração da sexta feira da paixão no ano em que celebramos 200 anos de presença Luterana em solo brasileiro é uma oportunidade ímpar para refletirmos sobre a contribuição da Teologia Luterana para a religiosidade e a vida em nosso país. Não devemos perguntar somente pela importância dessa teologia nos 200 anos passados, mas também hoje, quando tantas influências teológicas disputam lugar na sociedade brasileira.

A teologia Luterana sempre apontou e deverá continuar apontando para Cristo, de forma mais enfática quando a religiosidade cristã corre perigo de distanciar o olhar dele.

Então vamos dirigir nosso olhar agora para a paisagem central. O que vemos ali?

Um Rei traído, abandonado, fragilizado, crucificado entre criminosos.

Na placa no alto da cruz, onde constava o “crime” cometido por Jesus, lia-se REI DOS JUDEUS. Mas que rei é esse? Como uma ovelha sendo levada para o matadouro ele carregava sua cruz. Fora traído e abandonado. Ele, que não tinha pecado, foi pendurado entre dois criminosos como se um fosse. Esse que ai vemos tão frágil é o mesmo rei que nascera sem lugar e foi deitado em um berço de palhas. É o mesmo que transformou o mundo não com o poder das armas e exércitos, mas com palavras e gestos de amor.

Esse rei não se enquadra nas teologias que pregam que na vida dos verdadeiros cristãos só há bençãos e que tempestades não se abatem sobre eles.  A teologia da prosperidade, por exemplo, tão conhecida em nosso tempo também em terras brasileiras assim o pensa. Para esse pensar teológico, quem é fiel a Deus e o honra com sua fidelidade e seus dízimos não conhece doenças, nem dificuldade financeira, nem crise familiar, nem depressão… Para esse pensar, quem é abatido por qualquer infortúnio, é porque falhou na fé e na fidelidade.

Mas no Gólgota vemos algo diferente. Vemos o grande Deus que se fez pequeno e compreende nossa pequenez, nossas lutas, nossas misérias humanas e se coloca ao nosso lado. Mas do que isso, o rei da cruz nos convida a olharmos para os pequenos e praticarmos solidariedade. E é nessa solidariedade de Deus por nós e na nossa mútua solidariedade que a vida floresce.

Também a mais nova variante da teologia da prosperidade, a chamada “Teologia Coaching” não olha para a fragilidade da cruz. Seus expoentes tentam convencer que, através de uma postura de auto confiança e determinação o cristão alcança tudo o que deseja. Para esse pensar basta acreditar nas próprias capacidades concedidas por Deus e manifestarmos confiança que seremos vitoriosos em tudo. E é assim tentam justificar um mundo dividido entre fortes e fracos, entre vitoriosos e derrotados, entre ricos e pobres… definitivamente é uma teologia que desviou o olhar do Cristo crucificado. Ele que, em meio a sofrimento e dor fortaleceu os laços de sua mãe Maria com o discípulo amado. Jesus não deseja vitoriosos e derrotados, mas cumplicidade, compromisso e amor.

No Gólgota também vemos um rei que se fez servo, e nunca um rei dominador. 

No Hino Cristológico, em Filipenses lemos sobre Jesus: “Ele tinha a natureza de Deus, mas não tentou ser igual a Deus. Pelo contrário, ele abriu mão de tudo o que era seu e tomou a natureza de servo, tornando-se assim igual aos seres humanos. E, vivendo a vida comum de um ser humano, ele foi humilde e obedeceu a Deus até a morte – morte de cruz. Por isso Deus deu a Jesus a mais alta honra e pôs nele o nome que é mais importante de todos os nomes…”

Difere absolutamente dessa fé no Jesus servo, a chamada “Teologia do domínio”, que ganha espaço na espiritualidade do povo brasileiro. Essa, tem sua base numa interpretação equivocada do convite divino no livro de Gênesis para que o ser humano domine a terra. A mesma teologia também é construída inspirada nas histórias vétero testamentárias do  Rei Davi que, com sua liderança e seu exército, dominou povos e ampliou o poder político, econômico, religioso e territorial do povo de Israel. Com base nesse olhar a teologia defende que cristãos devam dominar. Dominar sobre não cristãos, sobre os recursos naturais e inclusive defendem a necessidade de cristãos dominarem as pautas do Estado, não concebendo a realidade de que vivemos em um Estado laico.

O desejo de dominação resultou no abandono do servo Jesus. Há um hino que expressa isso com as seguintes palavras: “Eles queriam um grande rei, que fosse forte e dominador, e por isso não creram nele, e mataram o salvador”. Jesus não veio na intenção de dominar, mas de servir. O domínio exclui, o serviço inclui. O domínio quer derrotar o diferente, o serviço respeita a todos. Jesus não é dominador, mas servo

Naquela cruz, antes de morrer, Jesus exclamou : “Está consumado”.

Como podemos compreender essa expressão? Uma interpretação poderia ser simplesmente que a vida de Jesus havia chegado ao fim. Mas ela é muito mais profunda. As últimas palavras de Jesus segundo o relato do evangelista João significam que a missão de Jesus estava completa; a salvação estava dada. Sim. Com a morte de Jesus para a remissão de nossos pecados a salvação está completa. Nada mais precisa nem pode ser feito. Jesus fez a obra completa.

Muitas vezes a religiosidade se torna opressora e exigente. Muitos cristãos vivem como se necessitassem aplicar-se em constante esforço através de uma vida santificada e de boas obras para alcançar a salvação. Vivem como se boas obras e comportamento fossem degraus de uma escada que leva ao céu. Essa ideia de meritocracia é opressora porque erros são considerados como degraus que perdemos em nossa escalada para a vida eterna. Nesse contexto ouvir as palavras “está consumado” é libertador e consolador. Elas nos dizem que a salvação não depende de nós. Elas expressam que Jesus é o único Salvador, que tudo está feito. A salvação é de graça, e a nós cabe aceitar de braços abertos a obra que ele realizou por nós no Gólgota.

Mas erra, por outro lado, quem vive a graça barata, que é o extremo contrário da meritocracia. Como se eu pudesse viver a vida completamente sem compromisso com o discipulado, uma vida desregrada e sem amor para com o próximo.   Não dá pra olhar para o sofrimento, a humilhação, o desprezo e a dor de Jesus sem compreender que ele fez isso por mim, por ti,  e por nós. Nossa salvação é de graça, mas ela custou muito caro, foi comprada não por prata nem por ouro, mas pelo precioso sangue do filho de Deus. Por isso quero crer nesse senhor, quero servi-lo com dedicação, quero amar o próximo como Jesus me amou e quero abraçar uma missão em favor da vida no mundo em resposta de gratidão ao que o Jesus conquistou para mim no gólgota.

Que a paisagem central da bíblia nos inspire. Que convidemos outros dirigir para Jesus o seu olhar. Que esse olhar próprio da teologia luterana continue fazendo diferença em nossa nação.

Amém.

  1. Breno Carlos Willrich

Blumenau – Santa Catarina (Brasilien)

pastorbreno@terra.com.br

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