Mateus 27. 32-50

Mateus 27. 32-50

PRÉDICA PARA SEXTA-FEIRA | SANTA 7 DE ABRIL DE 2023 | Mateus 27. 32-50 | Felipe Gustavo Koch Butelli |

Que a graça de Jesus, Deus encarnado e crucificado, o amor de Deus e a comunhão do Espírito de Cristo estejam com vocês. Amém.

Caras irmãs e caros irmãos em Cristo,

A sexta-feira da paixão é propícia ocasião para refletirmos com profundidade sobre o sentido da encarnação e morte de Deus em Jesus Cristo. E provocativamente, quero levá-las e levá-los a refletir para além da noção de sacrifício vicário, ou seja, para além da confortável compreensão de que Jesus morreu por vontade de Deus, para que nossos pecados fossem perdoados. Porque esta noção é muito confortável para nós e não nos permite compreender com profundidade o que foi a morte de Jesus na cruz. É fácil pensar que tudo já estava previsto por Deus. É fácil pensar que Jesus sabia que esta era sua missão. É mais tranquilo para nós colocarmos a responsabilidade da morte de Jesus na cruz no plano maravilhoso de Deus para nos salvar. Na verdade, nós não queremos enfrentar o significado da cruz. Na verdade, se pudéssemos, nós pularíamos esta cena, como se usássemos um controle remoto em um filme, porque ela é muito cruel, sofrida e desagradável. Preferimos saltar logo para a parte da ressurreição e isto é verdadeiramente perigoso. Perigoso porque nos desincumbimos de uma autocrítica, nos desimplicamos de entender que, talvez, a morte de Jesus não foi consequência da vontade de Deus, mas resultado daquilo que Jesus fez e pregou em sua vida para uma humanidade vil e incapaz de viver a proposta de amor que Jesus trouxe ao mundo. A pergunta que nos guia hoje é: por que, afinal, Jesus morreu?

A morte na cruz está intimamente ligada ao desejo de Deus expresso na sua própria encarnação. Nós, pessoas cristãs, cremos em um Deus que abre mão de ser Deus e deixa-se humanizar e morrer a morte cruel por amor, até o fim. Por mais que muitas igrejas prefiram pregar um Deus da glória, um rei em um trono celestial, um Espírito desencarnado na cruz, Jesus representa o maior paradoxo da divindade. Apresenta um Deus que abre mão da transcendência. Abre mão do seu lugar externo a este mundo, abre mão da condição etérea de um Deus distante, para se humanizar na fragilidade, na pobreza, na condição precária de uma família pobre de Nazaré, que vive sob um poder secular e imperial tirano e opressor. O paradoxo inicial é este. Deus abre mão de sua divindade. Se humaniza a ponto de ser incapaz de “descer da cruz”. Um Deus que se sente abandonado por si próprio e mergulha no vácuo da sua própria inexistência. “Eli, Eli, Lama Sabactani”, meu Deus, por que me abandonaste? No seu abandono, no vácuo da sua própria ausência, Deus morre. Jesus morre e resta-nos apenas o sopro do seu Espírito, entregue ao mundo na última expiração, no último gemido do corpo torturado, humilhado e vilipendiado de Cristo.

Isso acontece em Gólgota, o lugar da caveira. Lugar destinado aos ossos, ao suplício daquelas pessoas que desafiaram o poder de Roma. A crucificação não era punição para qualquer infrator, para qualquer bandido. Cruz era a punição para escravos ou insurgentes políticos. Aqui, novamente, as traduções nos enganam, pois o texto nos diz que ao lado de Jesus havia dois ladrões. Na verdade, a palavra grega “lestes” referia-se a terroristas armados que visavam derrubar o império Romano. A cruz é uma punição exemplar, que demonstra o poder do império para todas as pessoas que pensavam ser possível subverter a ordem e fazer uma revolução política contra Roma.

O texto nos diz que Jesus foi despido e que soldados dividiram suas vestes entre si. Portanto, Jesus estava nu na cruz. Nossas representações de Jesus na cruz geralmente colocam um pano amarrado ao seu corpo, porque nós também não conseguimos ver a sua nudez. A nudez tinha uma finalidade: a humilhação moral e a vergonha, para uma cultura muito baseada na honra pessoal, como aquela judaica de Jesus. As zombarias não cessaram por aí. Os soldados inscreveram em uma placa de madeira a frase “Rei dos Judeus”, como uma forma de ridicularizar o que julgavam ser seu intento. Afinal de contas, um verdadeiro rei senta em um trono, mas jamais seria pregado na cruz. Esta é a exposição humilhante para alguém que, na compreensão de Roma, ousa confrontar o império. Este é o tratamento dado a um autoproclamado Rei.

Jesus, apesar de em sua atuação pública ter sido um pacifista, apesar de ter sempre sugerido uma forma de resistência não-violenta, pelo conteúdo de sua mensagem, por anunciar um reino de amor e justiça e por ter reunido em torno de si multidões de pessoas pobres e marginalizadas, acabou sendo considerado verdadeira ameaça ao Império Romano. Este é o verdadeiro motivo da crucificação: a proposta de Reino de Deus é absolutamente ameaçadora aos poderes deste mundo, representados na ocasião pelo Império Romano.

Este crucificado, exposto à vergonha e ao martírio na cruz não é apenas contemplado pelos soldados. O texto nos relata que as pessoas transeuntes viam aquele Jesus, que em outras ocasiões haviam ouvido e acompanhado, e zombavam dele. Do mesmo modo, autoridades religiosas, sacerdotes e escribas que passavam pelo local faziam chacota com Jesus, a qual conheciam muito bem, afinal de contas, este mesmo Jesus ensinava publicamente nas sinagogas e poucas horas antes disso havia sido julgado pelo sinédrio. Perguntavam jocosamente: “Não pode salvar a si mesmo? Não é o filho de Deus? Se descer da cruz, daí sim poderemos crer nele”. Por fim, nem os condenados que estavam ao seu lado pouparam-no de humilhação. Transeuntes, religiosos, bandidos e soldados. Todas as pessoas – o que poderia talvez representar a totalidade da humanidade – fazia o mesmo questionamento: “Salvava os outros mas não pode salvar a si mesmo”. Sabidamente, Jesus não colocava Deus à prova. E a humanidade ali representada não podia entender como alguém salva os outros, mas não salva a si mesmo. Uma pergunta bem compreensível para nós. Afinal, se pudéssemos, sempre priorizaríamos a nós mesmos, a nós mesmas. Mas esta nunca foi a lógica de Jesus. Jesus veio para servir, e não para ser servido, veio para libertar, não precisava ser liberto. Veio para curar e perdoar, não necessitava reivindicar para si a cura ou o perdão. Pelo contrário, veio para dar a vida, para que os nossos pecados fossem perdoados. Para proporcionar que nós nos tornemos amigos e amigas de Deus. Nem naquele tempo, nem hoje temos plenas condições de compreender este gesto de Deus. É contrário a nossas regras de vida, à forma como vivemos a humanidade.

Assim é que Deus morre. Incompreendido por nós. Julgado como uma fraude, como um fraco, um derrotado, humilhado e só, abandonado pelas pessoas que o amavam, abandonado por Deus.  Em sua morte clama e lamenta toda criação de Deus. O texto nos diz que o dia pleno tornou-se escuro, por horas. A escuridão representa a vitória das trevas, uma recordação do caos primordial que antecedeu toda criação, um protesto da vida contra a opressão, a injustiça humana e contra a tirania da humanidade. Uma antecipação do próprio julgamento. A morte de Deus é um evento cósmico. A tristeza profunda toma conta do universo, fruto da perversidade humana. Resultado de uma ideologia de morte que infectou a humanidade. E que continua infectando e prevalecendo diante da morte injusta de cada pessoa. Os versículos que seguem ao nosso texto revelam os tremores de terra, as pedras que se quebram, o romper-se da cortina do Templo que separava o mundo sagrado do mundo profano. Em um mundo no qual Deus morre, sujeito aos poderes diabólicos da humanidade, não há mais espaço onde o sagrado possa residir.

Como pregar o evangelho num dia como esse? Como louvar alegremente diante da prevalência do poder da morte, da tirania da humanidade, que rejeita e condena violentamente o projeto de Deus para o mundo? Como deixar a dor da cruz pra trás e pular a cena, saltar a história direto para o domingo de Páscoa? É preciso viver a sexta-feira. É preciso nos darmos conta de que nós não somos em nada diferentes daqueles soldados romanos. Nós somos os transeuntes, os sacerdotes e as lideranças religiosas, que zombam e humilham o filho de Deus. Que, na primeira oportunidade questionamos: “como pode salvar os outros e não salvar a si mesmo?” Talvez a única boa nova seja a que Jesus entrega seu Espírito. Abre mão de si mesmo. Entrega-se, sem revolta ao martírio e à morte, confiante de que seu Espírito será a herança de vida que nos será destinada. Hoje, graças a Deus sabemos disso. Sabemos que seu Espírito será capaz de transformar a morte em vida. Seu Espírito será a nossa esperança de que o destino da humanidade não se limita à maldade, ao sadismo da humanidade, à tirania do poder. O Espírito de Cristo, expirado no mundo no último gemido de Jesus, é o Evangelho de hoje. Permaneçamos na noite escura, na vigília, no mundo dessacralizado, à espera pela vitória que somente o Espírito da vida poderá nos conceder.

Lâmpada para os meus pés é a tua Palavra, Senhor, e luz para o meu caminho. Amém.


P. Dr. Felipe Gustavo Koch Buttelli

felipebuttelli@yahoo.com.br

Goiânia – Goiás (Brasilien)

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