Ezequiel 37.1-14

Ezequiel 37.1-14

PRÉDICA PARA O 5° DOMINGO NA QUARESMA | 26 de  março de 2023 | Ezequiel 37. 1 – 14 | Leonídio Gaede |

Prezada Comunidade

I

Conta-se que três monges faziam uma caminhada matinal, como parte de seu exercício de meditação. Enxergaram uma bandeira hasteada, e um deles comentou: – Vejam como a bandeira se move. O segundo retrucou: – A bandeira não se move, é o vento que o faz. E o terceiro arrematou: – O assunto aqui não é se a bandeira se move ou se o vento move a bandeira. O assunto é como a mente de vocês está se movendo por causa da bandeira.

Há certas situações na vida em que se faz necessário esclarecer o que ou quem se move e o que ou quem faz mover. Me arrisco a dizer que Deus moveu o profeta Ezequiel para levantar um assunto perante o povo de Judá, cativo na Babilônia no século VI antes de Cristo, e, através da Sagrada Escritura, Deus move o profeta também hoje perante nós mesmos.

II

Vi que uma Bíblia traz o seguinte título sobre o capítulo 37 de Ezequiel: “A visão de um vale de ossos secos”. Parece-me que este título pode ser equiparado ao comentário do primeiro monge. O título não expressa conhecimento de causa e efeito. É como o monge que vê a bandeira tremulando e simplesmente conclui que ela se move. Referente ao profeta Ezequiel, seu assunto não é uma visão. A visão é o resultado de um assunto que o profeta quer abordar. Esse assunto faz Deus mover o profeta para a criação de um cenário muito impactante. Muito mais do que ver, Ezequiel frequenta um local. Ele visita uma realidade. Pisa onde seus pés não alcançam o chão sem tomar contato com ossadas humanas. Essas ossadas são de corpos de pessoas mortas e descartadas aos montes. Sobre o campo, os ossos estão muito próximos uns dos outros. Ao caminhar entre eles, o profeta ouve um som ritmado de osso batendo em osso, como baquetas produzindo música fúnebre que, contraditoriamente, inspira o profeta a anunciar novidade de vida, a partir de um espírito que sopra dos quatro lados.

Em outra Bíblia vi o título “Israel, o campo da morte, é revivido pelo sopro de Deus”. Pareceu-me o segundo monge se manifestando. A profecia existe por causa de uma situação vivida pelo povo de Deus. A denúncia do profeta apresentava Israel como um campo de morte: o povo levado cativo pelo exército de Nabucodonosor, no início do século VI a.C., não agia, estava imóvel, era um povo morto.

Segundo Ezequiel, dizer que essa morte tinha como causa a deportação, isto é, tinha como causa o fato de o povo ter sido deslocado de Jerusalém para a Babilônia, era também ainda uma visão superficial. É como se fosse a visão do segundo monge. Para o profeta, apesar da grande movimentação ocorrida nesse deslocamento, a morte do povo não estava no abandono forçado de uma terra recebida de Deus (Israel), no abandono de uma cidade destacada por Deus nessa terra (Jerusalém) e nem no abandono de um local nesta cidade, local consagrado por Deus para a adoração (o templo). A morte do povo estava na imobilidade que acontecia na atual situação.

No livro de Ezequiel podemos seguir a questão da mobilidade como um fio condutor de sua análise. Deus é móvel, é vivo. A morte está na imobilidade. Segundo o profeta, havia sinais de imobilidade na grande movimentação que transportou a liderança israelita de um lugar visto como central para um acampamento na beira de um rio desconhecido. Os corpos tinham sido movidos e as mentes continuavam imóveis (Ez 2.4). O profeta, que tinha comido um livro, era movido por palavras doces como o mel (Ez 3.3) e podia estar no templo (Ez 40-42) ou às margens do rio Quebar (Ez 1.1). O profeta, para quem Deus tinha se revelado como quem pode ir em todas as direções (Ez 1.17-18), percebia que o assunto não é a bandeira que se move e nem o vento que move a bandeira, mas é a mente imóvel criada por um movimento tão grande como foi o Exílio da Babilônia.

Figuradamente podemos dizer que Ezequiel questionava: como pode alguém passar sede na beira de um rio? É evidente que há saudades da terra. Há saudades da cidade. Há saudades do templo. Mas a saudade não justifica a imobilidade. A água que sacia a sede de Deus no Sião, também a pode saciar a sede no Quebar. A verdade que vale no exílio é que, com sede, não se vai a lugar algum. O espírito dos quatro ventos haverá de hidratar os ossos secos para que haja mobilidade.

III

Pela fé em Jesus Cristo, somos, nos dias de hoje, continuadores do povo para quem Ezequiel profetizou. E, como povos, como grupos e como indivíduos, sofremos os nossos exílios, as nossas deportações. Por isso a palavra de Deus nos alcança hoje através de Ezequiel. E ela alerta para a tendência de engessamento de nossa mobilidade nos dias de hoje. Uma dessas tendências está diante de um grande movimento humano ao redor do mundo. É o movimento das multidões à procura de refúgio em pátrias alheias. No outro lado desse grande movimento, nas pátrias procuradas, reina ainda um amor exclusivista à terra natal, um patriotismo avesso à justiça social e uma xenofobia. Isso é um gesso imobilizador do bom samaritano, da viúva pobre e do jovem rico que também vivem nessa pátria. Esse gesso imobiliza inclusive a garganta que se nega a tomar a água do Quebar, alegando saudade dos bons tempos de água pura em Sião. Há, inclusive, a tendência de imobilizar o próprio Deus no templo, negando aos os quatro ventos o direito de reidratar os ossos secos e ligar tendão com tendão.

Também como grupos atuantes nessas pátrias exiladas no planeta-casa-comum, nos apartamos da coletividade. Tornamo-nos uma parte da sociedade. Partidarizamos as ações grupais. Atuando como partido, convencemo-nos de que somos o soldadinho do passo certo e estancamos o sentido de tudo aquilo que outros realizam. A vida comunitária perde o sentido comum e torna-se bandeira que tremula por força própria. E diga-se: a bandeira do meu grupo que se move pela própria ânima é a única admissível. Não depende dos quatro ventos. O vento dos outros que fique imóvel no casulo.

Em terceiro lugar, como indivíduos, encapamos de traumas passados que nos fizeram sofrer. Não compartilhamos nossas dores encapsuladas. Procuramos, nós mesmos, não acessar nossas dores e ainda nos propomos a bloquear o acesso de qualquer outra pessoa. Alegamos que somos capazes, que não dependemos, que nossa dor é problema nosso. E bradamos: “Já vencemos, em nome de Jesus!” Privatizamos nossa dor e, a respeito de quem não o faz, concluímos: “É fraco na fé”. Assim cada qual carrega a sua capsula de sofrimento coletivo dos exílios de hoje. “O que vem para nós não podemos colocar na porta do outro”, disse-me alguém em dificuldade. A imobilidade diante de dificuldades só nos dá uma chance: aguardar passivamente o grande dia do retorno para a nossa sonhada Jerusalém eterna. Desta forma, negamos a mensagem profética de Ezequiel, que nos mostra Deus não só como um drone que voa em qualquer direção geográfica, mas que também povoa nosso ser em qualquer dimensão. Que os quatro ventos mobilizem os ossos secos nos campos do cativeiro e liguem tendão com tendão num ritmo de congraçamento e “todo ser que respira louve ao Senhor” (Sl 150). Amém!

Pe.Me. Leonídio Gaede

Itati – Rio Grande  do Sul (Brasilien)

leonidiogaede@hotmail.com

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