Gálatas 5,1-9

Gálatas 5,1-9

PRÉDICA NO DIA DA REFORMA | 31.10.2023 | Gálatas 5,1-9 | Harald Malschitzky |

Irmãs e irmãos em Cristo, comunidade reunida.

É uma sensação indescritível estar aqui hoje, na comunidade que nos acolheu por quase uma década…

Uma de nossas netas é ilustradora. Ela recebe textos e até livros inteiros e, com seus traços, cuida das ilustrações. Mas ela também escreve seus próprios livros, muitos deles com mais ilustrações do que textos. Não é diferente com seu último livro em quadrinhos. A história é simples: Uma pessoa que   adora o confinamento, mas que vai descobrindo um vazio que a leva a inventar mil coisas. Não só isso, ela descobre também que na casa tem mil coisas a fazer: Pia cheia de louça, máquina de lavar roupa estourando da carga, vassoura e pá do lixo no meio do caminho, sala de estar bagunçada, cama por fazer; o trabalho é escravizante. Passado um tempo de auto confinamento, finalmente a libertação e o final com a pergunta: E agora, o que é que eu vou fazer?

Liberdade de  quê? Liberdade pra quê? Na verdade a liberdade absoluta é uma abstração, não existe. Tanto nós mesmos com o mundo que nos cerca delimitam a liberdade, qualquer um de nós faz a experiência.

O apóstolo Paulo, na medida em que  a difusão da boa nova de Cristo, a boa nova que proclama liberdade  ia reunindo comunidades, teve que enfrentar a questão. Ocorre que as pessoas traziam na sua bagagem de origem tradições, costumes, ritos, práticas.  Os de origem judaica, por exemplo, traziam consigo o rito da circuncisão. A pergunta que se fazia era se, para ser cristão, era preciso observar primeiro esse rito. E no correr dos anos Paulo teve que responder a ainda outras questões: leis de pureza, leis de alimentação (animais puros ou impuros), prática da idolatria (Diana de Éfeso), fragilidade da própria saúde… Em todos os lugares e a todas as pessoas era preciso dizer e proclamar: Cristo nos libertou  para que nós sejamos realmente livres!(v.1).  Cristo nos libertou do que, de quem? Antes de mais nada,  de nós mesmos, do nosso olhar para dentro de nós, da preocupação com a própria salvação, de ritos e costumes que escravizam e tolhem a visão para o mundo e para os outros seres humanos. Tudo é relativizado, pois o que importa é a fé que age no amor (v.6). A libertação pelo Cristo  nos abre para os outros, para as causas dos outros, para as dores dos outros, tendo como fio condutor o amor que é mais do que só amor romântico e poético (que tem o seu valor!), que é solidário, que aceita o diferente e que tenta desfazer continuamente aquilo que escraviza, sejam eles costumes e práticas religiosas ou  costumes e práticas seculares, amor que admoesta, corrige e consola,  pois a vida é uma só. Em uma de suas cartas o apóstolo tematiza o amor como o maior de todos os dons (1 Coríntios 13).

Para Martim Lutero, no seu momento histórico no século XVI, a descoberta da “liberdade para a qual Cristo nos libertou” causou uma reviravolta inimaginável. Seus olhos e seu coração foram abertos para o emaranhado de leis, normas, costumes, desmandos que haviam enredado a sua igreja. A libertação pelo Cristo o desafiou a abrir caminho na própria igreja. Na sociedade civil ele viu a pobreza, o analfabetismo, o mau uso dos recursos financeiros,  e ele não teve dúvidas de se dirigir aos governantes, por vezes com duras palavras. Sua mensagem e sua ação também levantaram muitas perguntas sobre o cotidiano e a forma de novas comunidades, bem como do celibato, da família, do papel da mulher… A liberdade para a qual Cristo o libertou, deu muito trabalho para o resto da vida!

Nosso mundo é diferente da realidade de Paulo dois mil anos atrás e é também diferente do mundo de Lutero de 500 anos atrás. O Evangelho, porém é o mesmo e o fio condutor é o amor, nas palavras do lema desta celebração, A FÉ É LIVRE NO AMOR. Como podemos concretizar isso?

Tento exemplificar em alguns pontos. Como nós nos relacionamos na família e na sociedade? Somos capazes de nos olhar, olho no olho, abraço no abraço apesar de diferenças de origem e ideologias? Prezamos o encontro pessoal ou estamos transferindo sempre mais relações para pequenas máquinas? Há muitos relatos de pessoas que são visitadas somente por caminhos eletrônicos. Se conta que um avô dava mensalmente cem reais ao neto, dinheiro que ele tinha que buscar. Dia desses o avô contou que tinha entrado no mundo eletrônico até nas contas bancárias. O neto vibrou com a notícia: Oba, agora podes me mandar o dinheiro diretamente!  O avô continuou: A aparelhagem que comprei tem também um scanner: Vou escanear mensalmente uma nota de 100 reais e te mando a cópia por e-mail! A liberdade para a qual Cristo nos libertou nos aproxima uns dos outros em amor e solidariedade.

Como estão nossas comunidades, como está nossa igreja? Para evitar mal-entendidos: Comunidades e igreja estão dentro do mundo marcado e dominado pela tecnologia. E não há dúvida de que essa tecnologia oferece ferramentas muito boas para nos organizarmos. Eu, pessoalmente, um semianalfabeto tecnológico,  me sinto perdido, tanto no trabalho como em particular quando, como se diz, “cai o sistema”. Então: É claro que precisamos ir nos atualizando tecnologicamente! No entanto, ai de nós se cairmos no canto da sereia que promete solucionar tudo por via eletrônica. Ai de nós, se são ouvidas e vistas somente aquelas pessoas  que a dominam, se quem não a domina não lê o que escrevemos e não consegue ouvir o que dizemos porque no caminho estão links e plataformas como único acesso. Fomos libertados para usar o que é bom e que nos ajuda, também os avanços da ciência, desde que nada substitua o amor e não prejudique criaturas e criação. Uma palavra direta, um conselho, um ombro amigo, uma oração e até um momento de silêncio junto ao outro são imprescindíveis.

Estamos vivendo em um mundo cada vez mais ameaçado, não tanto pela natureza – também por ela, sem dúvida – mas pelo próprio ser humano, que com suas habilidades e conhecimentos científicos transformou o nosso planeta em um enorme barril de pólvora prestes a explodir, criando armas cada vez mais letais. A liberdade para a qual Cristo nos libertou nos desafia a fazer coro com todas as pessoas e instituições que protestam contra as guerras. Nós, também chamados de protestantes, temos que protestar contra as guerras e as matanças em favor da PAZ. Não se trata apenas de desculpar uns e criminalizar os outros, mas sim, se trata de dizer que o único caminho ainda viável é parar a violência, a matança, a destruição. Porque Cristo nos libertou para a liberdade e não para a morte protestamos contra qualquer guerra e protestamos em favor da paz.

Estamos prestes a celebrar 200 anos de presença luterana em terras brasileiras. A história pode ajudar-nos a traçar um panorama de tudo o que aconteceu e de tudo o que se fez como igreja. Nesse espelho – se dermos um pouco de atenção – veremos também onde falhamos e onde transformamos a liberdade em nova escravidão. O fio condutor do evangelho, o amor,  pode e deve nos ajudar a reter o que é bom e a abandonar o que nos impede na prática da liberdade.  A fé que é livre no amor deve ser o critério para nos guiar e também nos admoestar quando colocamos nossos projetos, nossas ideias, nossas ideologias no caminho. Registremos em nossas mentes e corações uma frase lapidar atribuída a Agostinho, teólogo amado por Lutero, que viveu entre os anos 354 e 430: AMA E FAZE O QUE QUERES!

  1. em. Harald Malschitzky

São Leopoldo – Rio Grande do Sul (Brasilien

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