Gênesis 32.22-31

Gênesis 32.22-31

Prédica para o 18º domingo após pentecostes | 16 de outubro de 2022 | Gênesis 32.22-31 | Pastor Dr. Teobaldo Witter |

(Leituras: Lucas 18.1-8; 2 Timóteo 3.14-4.5)

A travessia do vau pode ser percebida como caminhos humanos. Para Jacó, a travessia do vau significou ruptura com a vida de fugas e desentendimentos. Mudanças profundas de vida e de posicionamentos estão no horizonte.

O texto é a narrativa do encontro de Deus com Jacó. É uma espécie de “saga”. Inicialmente, expressa uma noite em que Jacó tomou sua família e atravessou o Vau de Jaboque. As suas esposas, filhos e servas passaram pelo ribeiro. Passaram também seus pertences todos. Jacó não fez a travessia. Ficou para trás, sozinho. Durante a noite lutou com um homem misterioso. A luta se prolongou até ao romper do dia seguinte. Na sequência, o texto explica que aquele encontro no Vau de Jaboque não era algo simples. Havia sentido profundo naquela luta. O homem que lutou com Jacó parecia ser uma manifestação visível do próprio Deus. Isso quer dizer que Deus apareceu a Jacó em forma humana. Num certo momento do texto está a narrativa de que o homem tocou na articulação da coxa de Jacó e deslocou sua junta (articulação da coxa de Jacó no nervo do quadril, v.32). Isso fez com que Jacó perdesse suas forças. Então, Jacó agarrou-se a ele e rogou por sua bênção. Ele foi abençoado e teve seu nome mudado de Jacó para Israel. O significado do novo nome do patriarca não apenas revela a natureza daquele encontro no vau de Jaboque, mas também demonstrava que ele havia sido transformado. “Já não te chamarás Jacó, e sim Israel, pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens e prevaleceste” (v.28). O testemunho de Jacó, após a luta e a bênção de Deus recebida, é significativo na teologia bíblica: “Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva” (v. 30).  Ou em outras palavras: vi Deus e não morri. Ou ainda: morrer é ver Deus.

Morrer é ver Deus.  Jacó faz a travessia do vau do Peniel manquejando e disse:  “Vi a Deus face a face, e a minha vida foi salva” (v. 30).  Será mesmo possível para a humanidade “ver Deus face a face?” A surpresa de Jacó é que ele não morreu.  Ajuda entender o que há no texto de Ex 33-18-20. O personagem não é Jacó, nem Israel,  mas Moisés.  Encontramos uma narrativa muito significativa sobre o ver Deus. “ Então Moisés disse: Rogo-te que me mostres a tua glória. Porém Deus disse: Eu farei passar toda a minha bondade por diante de ti, e proclamarei o nome do Senhor diante de ti; e terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem eu me compadecer. E disse mais: Não poderás ver a minha face, porquanto homem nenhum verá a minha face, e viverá. Disse mais o Senhor: Eis aqui um lugar junto a mim; aqui te porás sobre a penha. E acontecerá que, quando a minha glória passar, pôr-te-ei numa fenda da penha, e te cobrirei com a minha mão, até que eu haja passado. E, havendo eu tirado a minha mão, me verás pelas costas; mas a minha face não se verá”. É o sonho de todo o ser humano ver a face de Deus. Mas não é possível ver a face de Deus, pois, vê-la significa morrer.

Muitas pessoas consideram a morte assunto desvinculado da vida. Pelo fato de as  pessoas doentes irem ao hospital e, geralmente, serem retirados após falecimento.  Não é comum haver velórios nas casas, nem nas igrejas. Os momentos junto às pessoas doentes, falecimentos e sepultamentos não educam para a realidade da morte e da vida.

No entanto, a morte não é algo estranho à vida. Faz parte. Não existe morte sem vida e não há vida sem morte. Também não é algo estranho da fé, pois, a vida e a morte estão em comunhão, “dialogando e se espetando”. Ambos são realidades humanas e divinas. Mas Deus é o limite. Ele é o princípio entre uma e outra. Segundo os textos de Gênesis e Êxodo, Deus faz a análise de risco. Para que? Para possibilitar o autocuidado. Jacó estava entre vida e a morte.  Havia fugido da perseguição de Labão.  Depois se reconciliaram.  Mas agora estava diante de uma ameaça terrível. O encontro no amanhecer estava se encaminhando para ser com seu irmão Esaú, a quem defraudou, enganando e roubando-lhe a bênção do pai Isaque.  Estava “jurado de morte”. Não havia mais saída, porque devia ir à terra prometida, passando pelos campos de Esaú. Na solidão da noite, curte a clausura. Durante a noite, luta com alguém que não sabe quem é.  Dessa luta, fica com ferimento na coxa que o deixou manco. Mas permaneceu vivo e recebeu a bênção. Ele mesmo estranha o fato de ter visto Deus e não ter morrido. “Morrer é ver Deus”. Também Estevão o expressa assim, antes de morrer apedrejado, “agora vejo o céu aberto e o Filho de Deus em pé à sua direita” (Atos 7.56). Então, morreu. Jacó teve que aprender e reaprender a viver.

Estar entre a vida e a morte é a realidade humana. Valdir (nome fictício de pessoa real) foi acometido de infecção causada pelo Corona vírus. O seu estado de saúde foi se agravando. Teve que ser internado no Centro de Tratamento Intensivo. No dia seguinte, foi sedado e intubado. Ficou quarenta e oito dias nesta situação, com picos alternados de melhora e de piora na saúde. Melhorou. Recebeu alta hospitalar. E permaneceu vários dias sem caminhar, articulando apenas palavras desconexas e frases fragmentadas. Aos poucos conseguiu melhoras e pode trabalhar. Inicialmente de forma remota. Relatou que se lembrava pouco do período de intubação. Nas suas narrativas, mencionou momentos de intubação, quando participou de reuniões. E lhe apareciam lances. Disse que lembra de momentos de sofrimentos durante as reuniões.  “Até mesmo o demônio aparecia, às vezes”, disse. Outras teriam sido bem agradáveis. E Deus estava no meio. Seis meses depois, ainda tem sequelas. Sente alegria em ter vencido a luta difícil contra o Covid-19. Sente-se como num novo amanhecer. Disse que está reaprendendo a viver. Esta é uma de suas travessias pelo vau. Talvez seja a mais difícil. No caso de Jacó, depois das suas lutas durante a noite, sai fragilizado, manco. Teve mudança profundas em sua vida. Em humildade, espera o encontro com seu irmão de joelhos, suplicando por perdão. E reaprende a viver como gente reconciliada que é perdoada e que perdoa.

Perseverança: Perseverar é a qualidade de quem não desiste com facilidade, persistência. Característica ou particularidade de quem persevera, insiste e não desiste de algo está no horizonte de sua vida. Jacó não desistiu de lutar durante a noite em busca do nome com quem luta. Necessita da bênção. A viúva (Lucas 18.1ss) perseverou até que o juiz insensato atendesse sua demanda. E Jesus pregou que a oração da comunidade fosse de tamanha insistência que lembrasse Deus de sua promessa de atender ao que lhe pede. Neste sentido de orar e confiar, Martim Lutero (Palavras, portal luteranos, junho de 2021) expressa suas preocupações e o caminho a seguir: “Lançai nele todas as vossas preocupações. Jogue-as longe de si, resoluta e confiantemente. Não os jogue num canto qualquer, mas coloque-os nas costas de Deus, pois ele tem ombros fortes e é bem capaz de carregá-los”. Perseverantemente, pede, confia e receberá.

 Confiança: A confiança é o sentimento de segurança ao embarcar, por exemplo,  no ônibus, no avião ou em outro meio de transporte em que outro alguém dirige o veículo. A gente não tem controle. Tem que confiar no motorista, no piloto, senão não há outra possibilidade. Ou quando se submete à cirurgia e é sedado. No caso do paciente Valdir, ninguém pôde estar com ele, nem mesmo as pessoas que ele mais ama e as que mais o amam. Somente a equipe de saúde. Sua vida, seu corpo, todo o seu ser está totalmente à mercê, dependente de terceiros. Jacó tentou sempre fugir dos encontros. Do encontro com Labão teve sucesso em suas estratégias de sair vivo, em paz negociada. Mas com Esaú não vislumbra saída.  Para ir à terra da promessa, precisa cruzar pela terra de Esaú. E estava “jurado de morte”. Foi informado, através de seus mensageiros, que Esaú já está a caminho, com seu exército, para o encontro em que ele vislumbrava um grande confronto.  Sem saída, Jacó se recolhe em sua solidão durante a noite. Luta até amanhecer. Desta luta sai machucado, ferido. E se agarra ao que lhe resta: suplicar pela benção. Abençoado confia que sairá melhor como entrou na luta. Confia que Deus não permitirá que será morto. E que o perdão do irmão seja possível de ser realizado.

Jacó vai ao encontro do irmão, desarmado, expressa profunda disposição para o diálogo e o perdão. Com esta boa notícia no ar e nos corações, Esaú correu ao seu encontro para o abraçar e se reconciliar. Neste contexto, localiza-se a narrativa da luta de Jacó com Deus (Gn 32.22-32), sendo a sua travessia possível. É importante considerar a narrativa para a mensagem comunitária. Ela é muito linda, porque Deus, por sua graça, faz acontecer o encontro destes dois grupos orgulhosos, gananciosos e egoístas. Faz acontecer a justiça e a paz.

A Igreja cristã faz a sua travessia, conduzida por Jesus Cristo, colaborando nas obras de misericórdia, do amor, da justiça. Nesta fé em Deus, a comunidade caminha e vive entre acertos e erros. Jacó se encontrou nos limites da vida humana, e Esaú gostou do pedido de perdão do irmão fragilizado. Eles se reconciliaram. A base do relacionamento comunitário é a reconciliação com Deus e entre pessoas e a natureza. Na graça de Deus, estamos sendo chamados para realizarmos a travessia. Amém.


Pastor Dr. Teobaldo Witter

 Ariquemes, Rondônia (Brasilien)

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