Lucas 8.26-39

Lucas 8.26-39

PRÉDICA PARA O 2º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | 19 DE JUNHO DE 2022 | Texto bíblico: Lucas 8.26-39 | Marcelo Jung |

Hoje celebramos o segundo domingo após Pentecostes.

Esse nome, “após Pentecostes”, pode dar impressão de que celebramos, a cada domingo e a cada dia depois do evento de Pentecostes, o fato de estarmos nos distanciando de Pentecostes – Pentecostes está ficando para trás.

Porém, o sentido correto e verdadeiro dessa designação, “após Pentecostes”, é, para a igreja cristã, a lembrança e a celebração de que estamos vivendo em tempo de Pentecostes. Estamos vivendo agraciados, envolvidos, direcionados e impulsionados pela realidade de Pentecostes – que é a realidade de que Deus enviou e concedeu o Espírito Santo para a sua igreja.

E isso é uma maravilhosa dádiva de Deus.

Maravilhosa porque é o Espírito Santo quem cria a igreja. É ele quem nos capacita a crer em Jesus Cristo; a crer que, em Jesus Cristo, somos feitos filhos e filhas de Deus; que somos feitos família de Deus.

Além disso, o Espírito Santo, nos movimenta como igreja. É ele quem nos faz viver como filhos e filhas de Deus. É ele quem coloca em nós o desejo e a capacidade de testemunhar de Jesus Cristo neste mundo. É ele quem nos anima e movimenta como Corpo de Cristo nesse mundo para anunciar do evangelho da salvação e para realizar as obras de Jesus Cristo.

Por isso, os textos indicados para a pregação nesse tempo após Pentecostes são lidos na perspectiva de procurar ouvir o que o Espírito Santo quer fazer em nós e por meio de nós para que, em nós e por meio de nós, Jesus Cristo continue sua obra de salvação neste mundo.

Nessa perspectiva, ouçamos a leitura do texto indicado para a pregação de hoje. Leio no Evangelho segundo Lucas, no capítulo 8, os versículos 26 a 39 (LEITURA).

Nesse texto, temos o relato de uma ação missionária de nosso Senhor Jesus Cristo.

Pela perspectiva do tempo após Pentecostes, da qual falei anteriormente, somos convidados a: observar no texto a maneira como Jesus agiu; verificar a maneira como nós temos agido como testemunhas de Jesus; viver em sintonia com Jesus – no poder e na ação do Espírito Santo reproduzir em nossa vida (na vida da igreja) o mesmo modo de vida de Jesus.

Destacarei três pontos a partir do texto.

Primeiro: A direção tomada por Jesus indica para a sua igreja a direção que ela deve seguir.

O evangelista Lucas emoldura o acontecimento relatado com a indicação de um movimento, de um deslocamento geográfico de Jesus com os seus discípulos.

Vejamos as pistas que o texto nos dá sobre esse direcionamento.

No versículo 22, pouco antes do trecho lido, Lucas relata que, estando na terra da Galiléia, Jesus entrou num barco em companhia dos seus discípulos e disse-lhes: Passemos para a outra margem do lago. Eles partiram assim como Jesus ordenou. Enfrentaram uma tempestade que foi acalmada por Jesus, o que está registrado nos versículos 23 à 25, e rumaram, como diz no versículo 26, para a terra dos gerasenos, fronteira da Galiléia.

Que lugar é esse?

A terra dos gerasenos exatamente em frente a região Galiléia, do outro lado do mar da Galiléia. A população desse lugar era formada por muitos gentios (povos não judeus) e a grande maioria era de cultura helenística grega (ou seja, pagã). Reforça a indicação dessa cultura helenística e ausência da cultura e religião judaica, a criação de porcos, mencionada no versículo 32. Para os judeus, conforme prescrevia o livro de Deuteronômio, os porcos eram animais considerados impuros e, por isso, proibidos. E o nome com que são identificados os demônios, legião (no v.30), indica uma provável adesão dessa população ao sistema provincial romano naquela região – legião era a designação para a maior unidade do exército romano; unidade que contava com cerca de 6.000 soldados em sua força total.

Por esses detalhes no texto, Lucas comunica que Jesus Cristo se dirigiu, não por acaso ou por um acidente de percurso, mas intencionalmente, em direção a pessoas estrangeiras; pessoas que pelos judeus eram consideradas, do ponto de vista político, inimigas; e do ponto de vista religioso, impuras. Pessoas consideradas pelos judeus como totalmente excluídas da possibilidade de relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus.

E indo em direção e ao encontro dessas pessoas excluídas, Jesus Cristo teve um encontro com um homem que estava para “mais além” da exclusão da possibilidade do relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus. Um homem possesso de demônios (v.27), de muitos demônios (v.30); tantos que se identificavam com o nome legião (v.30 – a designação do número de 6.000 soldados romanos) e que, ao terem sido expulsos do homem, por serem muitos demônios, tomaram posse de uma grande manada de porcos e os precipitaram para dentro do mar da Galiléia (v.32).

Por causa da possessão demoníaca, o homem estava em estado deplorável. Não se vestia, não habitava em casa (…) vivia nos sepulcros (v.27); era uma “não pessoa” que alguns tentavam conservar preso com cadeias e grilhões (v.29), mas o homem possesso a tudo despedaçava e era impelido pelo demônio para o deserto (v.29). Sepulcros e deserto eram entendidos naquela época como lugares preferidos dos demônios.

Na sua descrição, Lucas quer fazer perceber que, conforme o pensamento da religião judaica, aquele homem estava, não apenas, excluído da possibilidade de relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus, mas, estava extremamente excluído – “bem pra lá de excluído” –, da possibilidade de relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus.

E Jesus Cristo foi em sua direção. Jesus não se desviou dele. Jesus não o evitou. Jesus foi buscar e salvar esse homem “bem pra lá de excluído”.

Como igreja de Jesus Cristo; como corpo de Cristo na terra, temos ido nesta mesma direção? Temos feito o mesmo movimento de Jesus?

Confessamos crer que Jesus Cristo conquistou a salvação e a destina e oferece para todas as pessoas, sem distinção. Confessamos que Jesus Cristo quer acolher a todas as pessoas, sem distinção, em seu Reino. Contudo, você já reparou que é muito fácil cairmos na tentação de negar essa fé?

De que maneira? Quando elaboramos “listas” de quem pode e de quem não pode ser salvo. Infelizmente, facilmente caímos na tentação de configurar o evangelho à nossa imagem semelhança e, por esse evangelho configurado, julgar que podem ser salvas somente aquelas pessoas que, no plano das coisas inferiores, como diria Lutero (p.ex. organização social, modelo econômico, opção política, costumes, estilo de vida…), pensam como pensamos; que defende os mesmos princípios que defendemos; que apoiam as mesmas propostas que apoiamos; que tem o mesmo estilo de vida que temos (ou, pelo menos, parecido com o nosso estilo de vida).

Facilmente caímos na tentação de colocar no evangelho aquilo que não vem da Palavra de Deus, mas o que vem de nossas convicções e preferências, e, com isso, elaboramos listas de quem está incluído da oferta de salvação e quem está excluído da oferta de salvação em Jesus Cristo.

Para os judeus, inclusive os discípulos de Jesus, os gerasenos e os gentios em geral, estavam na lista dos excluídos da oferta da salvação. E o geraseno possesso de uma multidão de demônios, então, estava na lista dos “bem pra lá de excluídos” da oferta da salvação. Mas Jesus os tinha na sua lista de incluídos da oferta de salvação. Jesus foi em direção a eles. Jesus intencionalmente quis os alcançar e oferecer a eles sua salvação; a reconciliação com Deus.

Por esse movimento de Jesus em direção aos considerados excluídos e àquele homem “bem prá lá de excluído”, somos lembrados que fomos alcançados por Jesus, como pessoas individuais e como comunidade, sem que ele fizesse primeiro um exame de seleção para verificar se merecíamos ou não a sua salvação. Pela pregação do evangelho, Jesus, no poder Espírito Santo nos chamou e iluminou, nos concedeu a fé e nos incluiu no seu povo

 Assim como nos alcançou, é desejo de Jesus que por meio de nós outras pessoas sejam alcançadas com o seu evangelho; com a anúncio da sua salvação. É desejo de Jesus quem não tenhamos listas de quem pode e de quem não pode ser salvo. É desejo de Jesus que anunciemos o evangelho e convidemos para salvação todas as pessoas, sem distinção, inclusive os que consideramos excluídos e até os que consideramos “bem pra lá de excluídos”.

Estamos em sintonia com nosso Senhor, seu evangelho e sua salvação?

Estamos em sintonia com seus planos conosco?

Estamos vivendo guiados pelo Espírito Santo, ou seja, desejosos pela salvação de todas as pessoas e agindo de acordo?

Fazemos listas de quem pode ser salvo e de quem não pode ser salvo?

Quem são as pessoas na nossa lista de excluídos? E quem são as pessoas que estão na nossa lista dos “bem pra lá de excluídos”?

Cremos que Jesus quer que levemos o anúncio da salvação para essas pessoas também?

Nossos olhos estão abertos e nossos corações estão voltados para as pessoas que ainda não receberam o anúncio da salvação em Jesus Cristo? Nossos pés se movem em direção a elas?

Deixemo-nos questionar e julgar por essa verdade. Toda e qualquer lista que julga quem pode e quem não pode ser salvo merece o juízo e a condenação de Deus.

Mas também deixemo-nos consolar, motivar e impulsionar por essa verdade. Jesus Cristo nos convida, ainda hoje, a termos apenas a lista dele de quem deve receber o anúncio da salvação. Ele nos convida, ainda hoje, a anunciar o evangelho e convidar à salvação todas as pessoas, sem distinção.

Segundo ponto: A oferta de Jesus indica para a sua igreja aquilo que ela deve oferecer.

Lucas descreve que àquele povo excluído e àquele homem “bem para lá de excluído” da possibilidade do relacionamento de paz com Deus e com o povo de Deus, Jesus Cristo, graciosamente, manifestou quem ele é.

Jesus Cristo revelou ter total autoridade sobre os demônios. Vemos isso no v.28, na reação do homem possesso: prostrou-se diante de Jesus. Essa reação comunica o sentido de um temor gerado por um reconhecimento. Os demônios temem porque reconhecem que Jesus tem poder para atormentá-los(conforme diz no v.28) e lançá-los no abismo (conforme diz no v.31). Expressões usadas para a descrição da execução, por Deus, do juízo final sobre os demônios (conforme Apocalipse 14.10 e 20.10, serão atormentados; e conforme Apocalipse 20.3, serão lançados no abismo).

Jesus não fez um pedido, mas anunciou com autoridade o que deveria ser feito; ordenou ao espírito que saísse do homem (v.29). E, por fim, reconhecendo a autoridade de Jesus os demônios precisam da permissão de Jesus porque só podem fazer o que Jesus lhes permite (v.32).

Além de sua autoridade, Jesus Cristo revelou ter compaixão do homem “bem pra lá de excluído” e estendeu para ele a sua salvação. A ação salvífica de Jesus fica evidente na transformação do homem. Vejamos detalhes dessa salvação.

Você lembra de como o homem estava antes da libertação que Jesus lhe concedeu (v.27,29)?

Agora, liberto por Jesus Cristo, o homem está sem um demônio sequer, vestido, em perfeito juízo, com capacidade de raciocinar e pensar de forma adequada e sadia. Sua vida foi restaurada por dentro e por fora.

O homem está assentado aos pés de Jesus (v.35). Esse detalhe é bem importante, porque essa é a posição de um discípulo. Assim estava Maria, irmã de Marta e Lázaro, diante de Jesus, na visita que Jesus fez a eles (Lc 10.39); e assim Paulo descreve seu relacionamento de diante do Rabi (mestre) Gamaliel (At 22.3).

Por fim, a ação de Jesus fez do homem possesso um homem salvo (v.38) – a expressão, salvo, tem o sentido de cura após um período de enfermidade; de resgate do perigo e restauração de estado anterior de segurança e bem-estar; e da experiência da salvação divina. Ao que parece, Jesus Cristo concedeu todas essas dimensões da salvação àquele homem “bem pra lá de excluído”.

Como parte integrante de libertar e salvar aquele homem “bem pra lá de excluído”, Jesus não só o acolheu como um discípulo, mas também e o enviou como seu discípulo. O homem pediu para Jesus que o deixasseestar com ele (v.38), o que é uma dimensão importante e indispensável do discipulado (cf. Mc 3.13-14). Mas, Jesus lhe conferiu outra dimensão importante e indispensável do discipulado, Jesus o despediu dizendo: Volta para a casa e conta aos teus o que Deus fez por ti (v.38-9). E o homem, como discípulo fiel, obedeceu: então, foi ele anunciando por toda a cidade todas as coisas que Jesus lhe tinha feito (v.39). Vale observar que a expressão anunciar é para Lucas uma palavra conceitual que descreve a ação da proclamação do evangelho por parte de Jesus e dos demais discípulos e apóstolos.

De certa forma, aquele homem experimentou antecipadamente o que os demais discípulos experimentaram na grande comissão de Mateus 28.18-20 (ou mesmo de At 1.8): o chamado para viver sob a autoridade de Jesus como discípulo, o envio para fazer novos discípulos, a obediência à Palavra de Jesus e a certeza da presença de Jesus aonde quer que fosse.

Ainda é preciso observar um detalhe importante da manifestação de Jesus para aquele homem. Por ela, aquele homem reconheceu que Jesus é Deus, o único Deus. Repare no versículo 39: Jesus o despediu com a ordem de contar tudo o que Deus fez por ele. E o homem obedeceu e foi anunciando por toda a cidade todas as coisas que Jesus lhe tinha feito. E reconhecendo em Jesus o próprio Deus, o homem salvo por Jesus, fez o que o povo de Deus deve fazer: viveu como testemunha de Jesus Cristo e sua salvação.

Que dádiva! Que transformação!

Somente em Jesus Cristo se encontra a Deus como Deus gracioso que liberta e salva, que restaura a vida por dentro e por fora, que dá direção correta para viver em sintonia com Deus e com o povo de Deus. E só é possível encontrar a Jesus Cristo porque ele vem ao nosso encontro. No caso do homem “bem pra lá de excluído”, o encontro foi em carne e osso; em nosso caso, o encontro se dá pela ação do Espírito Santo pela Palavra de Jesus.

Será que oferecemos as pessoas o que Jesus ofereceu ao homem geraseno?

Jesus Cristo fez em favor de todas as pessoas, tudo o que é necessário e suficiente para a salvação e reconciliação com Deus. O texto nos faz lembrar de questões básicas da salvação em Jesus Cristo. A sua salvação não depende das pessoas a quem é oferecida, mas depende do que Jesus Cristo fez e faz pelas pessoas. Jesus não exigiu que o geraseno possesso de demônios primeiro melhorasse a vida para depois realizar sua ação salvífica em favor dele. Aliás, o geraseno possesso de demônios nem poderia fazer isso por si mesmo. Precisava da salvação de Jesus. E Jesus, por sua misericórdia e graça, fez tudo o que era necessário e suficiente para libertar aquele homem – também para todos os Gerasenos e para seus discípulos.

Pela obra salvífica de Jesus é possível novidade vida. O que aconteceu com o geraseno que foi liberto por Jesus nos mostra que a resposta de fé à ação salvífica de Jesus se concretiza em colocar-se sob a autoridade de Jesus – Reconhecer que Ele é o Senhor; viver como discípulo(a) dele; ouvir a sua voz com confiança; obedecer a sua vontade; fazer novos(as) discípulos(as); contar com sua presença todos os dias até a consumação dos séculos.

Somos lembrados que ser incluído na reconciliação com Deus e no povo de Deus pela salvação em Jesus Cristo sempre se desdobra em viver novidade de vida: a transformação de inimigo(a) de Deus para filho(a) de Deus; de separado(a) de Deus para reconciliado(a) com Deus; de escravo(a) do diabo, do pecado, da morte e do inferno para liberto(a) que pertence a Jesus Cristo; de viver a partir das próprias verdades, vontades e planos para viver a partir da verdade, vontade e plano de Deus revelados em Jesus Cristo; de viver para si mesmo(a) para viver com Jesus e para Jesus, em testemunho do seu Nome e em serviço ao próximo; de guiar-se por seu próprio espírito para ser guiado(a) pelo Espírito Santo.

O evangelho que vivemos e anunciamos, conduz ao discipulado de Jesus?

Temos vivido pessoalmente e comunitariamente em discipulado?

Confiamos na ação salvífica de Jesus ou confiamos em nossas qualidades para a salvação?

A salvação é apenas uma mensagem que recebemos ou uma realidade na qual vivemos pela ação do Espírito Santo?

Na comunidade, cuidamos uns dos outros e motivamos uns aos outros a viver essa novidade de vida?

Conduzimos ao discipulado nossos filhos e filhas? Ou os deixamos “escolher” os próprios caminhos?

Conduzimos ao discipulado as novas pessoas que chegam na comunidade? Ou as deixamos como estão?

A salvação, dada a nós, tem se tornado viver em novidade de vida de obediência a Jesus?

Deixemo-nos questionar por essa verdade. Que ela nos julgue e nos acuse se precisamos. Evangelho que não conduz ao discipulado não é evangelho. Está sob o juízo de Deus.

Mas também deixemo-nos confortar por essa verdade. O convite para viver em novidade de vida e para oferecer novidade de vida pela salvação em Jesus Cristo, continua valendo. É um chamado que recebemos também, e mais uma vez, hoje.

Terceiro ponto: A reação à Jesus Cristo e à sua salvação é a mesma reação que a igreja deve esperar receber.

Quais foram as reações que Jesus recebeu?

Lucas demonstra que a ação salvífica de Jesus entre os excluídos recebeu duas distintas respostas: aceitação e rejeição.

Após a libertação do homem possesso, pela expulsão dos demônios realizada por Jesus, o homem creu em Jesus. Lucas não utiliza a expressão “crer” para descrever a reação do homem liberto, mas a sua resposta – o estar assentado aos pés de Jesus, o desejo de estar com Jesus, a obediência a Palavra de Jesus, o testemunho do que Jesus fez em sua vida e o reconhecimento de que Jesus é Deus – corresponde ao que a bíblia chama de fé em Jesus Cristo.

A população em geral também recebeu a ação salvífica de Jesus. Não da mesma maneira que o homem possesso que foi liberto, mas presenciaram a autoridade e o poder salvífico de Jesus de forma marcante. Tanto é que foram anunciar (o acontecimento) na cidade e pelos campos (v.34); ficaram dominados de terror ao voltar com o povo e encontrar o homem de quem saíram os demônios, vestido, em perfeito juízo, assentado aos pés de Jesus (v.35); e podiam contar aos outros como fora salvo o endemoniado (v.36). Mas, recebendo a mesma ação salvífica, a sua reação foi diferente do homem possesso que fora liberto: todo o povo da circunvizinhança dos gerasenos regou a Jesus que se retirasse deles, pois estavam possuídos de grande medo (v.37). A expressão “o povo rogou que Jesus se retirasse” pode ser traduzida por: o povo rogou a Jesus que deixasse de existir ou que desaparecesse.

Em todo caso, a população não quer estar com Jesus, não quer ouvir sua Palavra, não quer aderir ao discipulado; não quer obedecer-lhe, não quer reconhecê-lo como Deus; não quer testemunhar dele.

E Jesus os atende. Tomando de novo o barco, voltou (para a margem da região da Galiléia) (v.37). Chama a atenção que Lucas descreve a conversa de Jesus com o homem possesso que foi liberto somente depois de Jesus atender a resposta do povo que o rejeitou. Fica evidente que vida com Jesus Cristo e identificação com Jesus Cristo só existe mediante a fé em sua graciosa salvação.

A ação salvífica de Jesus foi manifestada para todas as pessoas, até para as consideradas excluídas e “bem pra lá de excluídas”, mas só experimentaram a reconciliação com Deus e a inclusão no povo de Jesus aquelas pessoas que creram nEle.

Essa realidade é a mesma que acontecia entre os judeus, que se julgavam incluídos no povo de Deus pela etnia e pela tradição religiosa. Ao receber abundantemente a manifestação salvífica de Jesus, alguns creram e outros rejeitaram; alguns, pela fé, foram incluídos no discipulado (no povo de Jesus), outros, pela descrença, permaneceram fora do discipulado (do povo de Jesus).

Jesus Cristo (e sua salvação) pode ser aceito ou rejeitado.

Sem dúvida e com muita evidencia o texto nos revela que Jesus Cristo quer a salvação de todas as pessoas, sem distinção – das pessoas que estão em nossa “lista de incluídos”, em nossa “lista de excluídos” e, até em nossa “lista dos bem pra lá de excluídos”.

Mas também é muito evidente de que as pessoas não são incluídas na salvação pelo fato de estarem em uma de nossas listas (“de incluídas”, ou “de excluídas”, ou “de bem pra lá de excluídas”).   As pessoas (não importa em qual de nossas listas estejam) são incluídas – desfrutam a salvação – somente pela fé em Jesus Cristo. Jesus manifestou sua graciosa salvação diante de judeus, de gerasenos, de gentios, de possessos de demônios, de publicanos, de prostituas, de fariseus, de pecadores, de sacerdotes, de pobres, de ricos, de homens, de mulheres, de crianças… de todas as pessoas. Todas as pessoas, sem distinção, receberam essa manifestação. Mas apenas as pessoas que confiaram em Jesus experimentaram a salvação – a novidade de vida.

Como igreja, esperamos essas reações diante do testemunho da salvação em Jesus Cristo?

Como igreja, suportamos essa realidade do evangelho; de que pode ser rejeitado?

Atualmente é necessário destacar essa característica própria do evangelho – que pode ser aceito e rejeitado – para que tenhamos discernimento diante pensamentos e posturas que tem desvirtuado e desconfigurado o verdadeiro evangelho.

Que pensamentos e posturas são esses?

Por um lado, há pregadores e comunidades que anunciam um evangelho desvirtuado e desconfigurado porque o seu objetivo é ter sucesso. Para ter sucesso numa sociedade de competição e consumo como a nossa, muitos desvirtuam e desconfiguram o evangelho para ele tenha apenas aceitação. Palavras bonitas. Mensagens inspiradoras. Orientações para uma vida de conquistas e sucesso. Monitoramento para desenvolver potenciais adormecidos. Condução para encontrar a si mesmo. Maneiras de alcançar a felicidade… Assim, a igreja fica cheia. Aumentam os seguidores (do pregador e da comunidade e não necessariamente de Jesus). Recebe-se reconhecimento, aplausos, curtidas nas redes sociais. Que sucesso!

Por outro lado, há pregadores e comunidades que desvirtuam e desconfiguram o verdadeiro evangelho para atender as pautas dos interesses da sociedade ou de grupos específicos. No lugar do evangelho são colocadas ideologias e defende-se que as pessoas desfrutam a salvação pelo fato de se identificar com um determinado grupo: o branco é salvo porque é branco; o negro é salvo porque é negro; o germânico é salvo porque é germânico; o indígena é salvo porque indígena; o homem é salvo porque é homem; a mulher é salva porque é mulher; o heterossexual é salvo porque é heterossexual; o homossexual é salvo porque é homossexual; o LGBT é salvo por ser LGBT; o pobre é salvo porque é pobre; o rico é salvo porque é rico… e por aí vai.

Quem quiser defender algo desse tipo é livre para defender, mas, aí o evangelho não é mais evangelho revelado em Jesus Cristo; é evangelho configurado ao ser humano e ao gosto do cliente. Nesse evangelho, não revelado, mas configurado, a dignidade humana está no ser humano em si e não no amor de Deus pelo ser humano; o pecado está apenas nas estruturas opressoras ou no ambiente e não no ser humano; e a salvação está apenas na libertação de opressões e não na restauração do relacionamento com Deus – que, por sua vez, gera nova vida.

De que evangelho vivemos?

Que evangelho anunciamos?

É o evangelho revelado em Jesus Cristo, pelas escrituras; ou é um evangelho desvirtuado e desconfigurado para garantir sucesso aos padrões do mundo competitivo e consumista?

É o evangelho revelado em Jesus Cristo, pelas escrituras; ou é um evangelho desvirtuado e desconfigurado para atender as pautas da sociedade ou de grupos específicos?

Temos permanecido fiéis às características do evangelho revelado – que pode ser aceito ou rejeitado – ou tentamos configurar o evangelho ao gosto das pessoas para ter apenas aceitação? Para termos sucesso de público? Para nos encaixarmos naquilo que é politicamente correto?

Deixemo-nos questionar por essa verdade. Que ela nos julgue e nos acuse se precisamos. Evangelho não pode ser configurado, ou melhor, desfigurado para agradar a quem o ouve.

Mas também deixemo-nos confortar por essa verdade. O convite para vida em sintonia para com o Evangelho revelado em Jesus continua valendo. O chamado para experimentar e anunciar o evangelho genuíno continua valendo.

Seguimos em tempo após Pentecostes. Que o Espírito Santo nos capacite a crer na palavra que ouvimos. Que ele nos conduza no autoexame a partir dessa palavra. Que ele nos leve a viver em sintonia com Jesus Cristo e, assim, que o Espírito Santo nos mova na direção que Jesus foi, nos faça oferecer o que Jesus oferece e nos faça esperar as reações que também Jesus teve, sem desconfigurar o evangelho dele. Amém.

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P. Marcelo Jung

São Bento do Sul – Santa Catarina (Brasilien)

ma2jung@hotmail.com

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