Marcos 10.2-12

Marcos 10.2-12

PRÉDICA PARA O  19º DOMINGO APÓS PENTECOSTES – 3 de outubro de 2021 | Texto bíblico: Marcos 10.2-12 | Stéfani Niewöhner |

O texto de hoje é mais um daqueles onde Jesus é confrontado pelos fariseus com alguma questão complicada. Hoje, a pergunta é sobre a legitimidade do divórcio. Os fariseus perguntam: “É lícito ao marido repudiar/mandar embora sua mulher?” A questão é, na verdade, uma pegadinha. Exige muito mais do que um mero “sim” ou “não” como resposta.

Jesus é sábio. Ele responde com outra pergunta: “— O que foi que Moisés mandou?”. E eles respondem “— Moisés permitiu ao homem dar à sua esposa um documento de divórcio e mandá-la embora”.

Os fariseus respondem com base no texto de Deuteronômio 24. Esse texto era conhecido dos fariseus e também de Jesus. Em Deuteronômio, lemos ainda que o divórcio acontecia por qualquer motivo. Bastava o homem achar algo “indecente” ou algo que não lhe agradasse na sua esposa, qualquer coisa. Na resposta dos fariseus, pode parecer que Moisés incentivou o divórcio. Mas essa ainda não é a visão completa da cena.

No tempo de Moisés, o divórcio já era uma prática comum. Mas, quando uma mulher era mandada embora pelo marido, ela não poderia casar-se novamente a não ser que fosse acusada de  adultério, pois nesse caso, seria condenada à morte por apedrejamento. Então, quando Moisés fala do divórcio, ele coloca como lei dar a “carta de divórcio” à mulher, para que assim seu direito e sua dignidade fossem assegurados após o divórcio.

A lei de Moisés ajuda a questão das mulheres, mas não resolve o problema mais profundo. E é justamente esse problema que Jesus procura iluminar.

Para entendermos melhor a situação, precisamos entender um pouco como viviam homens e mulheres no tempo de Jesus.

Naquela época, uma mulher não tinha muita autonomia. Uma mulher não poderia escolher se queria uma vida celibatária ou o casamento, por exemplo. Também não podia exigir o divórcio. Eram os homens que tomavam essas decisões. E, mesmo em caso de divórcio ou viuvez, na maioria dos casos, ela também não podia escolher se queria casar-se novamente ou não. Era comum que nos contratos de casamento, fixados entre pai e marido, nem mesmo constasse o nome da mulher em questão.

A sedentarização e o desenvolvimento das cidades fizeram com que a mulher perdesse uma certa liberdade que tinha no ambiente rural e agrário. Nas cidades, o homem é quem assume os instrumentos de poder social. A mulher fica restrita ao lar, na função de esposa e mãe.

Mulheres não eram contadas como pessoas, seja legalmente, socialmente ou religiosamente. Mulheres não tinham direito à propriedade. O pai, marido ou filho eram donos da casa e da terra. Uma mulher divorciada, sem filhos, não tinha escolha: ou retorna à casa do pai (se ainda o tem, e se ele a aceita de volta) ou se casa novamente, do contrário  está sujeita à vida na prostituição.

A lei era rígida com as mulheres. Uma mulher não deveria sequer conversar com um homem que não fosse da família; tal atitude era considerada sinal de adultério. Em diversos períodos da vida, a mulher deveria ficar reclusa em casa, por ser considerada impura, devido à menstruação, parto ou qualquer tipo de sangramento. Se o parto fosse de uma menina, o período de reclusão era o dobro do tempo do que era exigido em caso do nascimento de um menino.

Cabe dizer ainda, que mesmo em meio a essa realidade, ao longo da história de Israel vemos mulheres líderes, em âmbito religioso e político, que agiram em benefício da comunidade. A lei apresentava algumas brechas que permitiam que as mulheres testemunhassem publicamente e tivessem direito a posses. Com isso, percebemos a existência de grupos que buscavam outras maneiras de viver e se relacionar.

Tendo esse cenário em mente, voltamos, agora, à resposta mais profunda de Jesus. Ele diz: “— Moisés escreveu esse mandamento para vocês por causa da dureza do coração de vocês.” Aqui, dureza do coração, no original grego, é sklerocardia, literalmente, “esclerose do coração”, ou seja, um coração que desaprendeu a amar e passou a colocar a lei acima do amor e da compaixão. E aí ele volta às origens. Relembra da criação em gênesis, quando Deus cria homem e mulher. Jesus cita Gn 2.24, dizendo: “Por isso o homem deixa o seu pai e a sua mãe para se unir com a sua mulher, e os dois se tornam uma só pessoa.”. E, assim, conclui a conversa com os fariseus: “Portanto, que ninguém separe o que Deus uniu”.

Jesus e os discípulos vão para casa, e lá o assunto continua. Jesus reforça o que dissera aos fariseus, afirmando que comete adultério, tanto o homem que manda a esposa embora e se casa novamente, quanto uma mulher que manda o marido embora e se casa novamente.

A resposta de Jesus é radical e impensável para a época. Jesus coloca igualdade e justiça como critério. O que vale para homens, vale para as mulheres, e vice-versa. Ao tratar o assunto dessa maneira, Jesus tira o privilégio que o homem tinha sobre a mulher.

O assunto do divórcio não era um assunto fácil na época de Jesus. Também não o é hoje. Sabemos que muitas pessoas experimentam libertação depois de um divórcio em casos onde o casamento era abusivo, permeado pela violência ou desrespeito.

Mas sabemos também que muitas pessoas se separam por qualquer motivo, sem antes conversar, orar, buscar ajuda e tentar ajeitar as coisas. Nesses casos, assim como fez Jesus, deveríamos lembrar do começo. Relembrar gênesis. Relembrar o começo do namoro. Relembrar o dia do casamento. O dia em que o casal escolheu dizer o mútuo “sim”. E a cada dia, na tristeza ou alegria, na saúde ou na doença, escolher novamente dizer aquele “sim”, se isso ainda for possível.

Não seria certo dizer que uma relação pode ser dissolvida facilmente, nem tampouco dizer que não pode ser dissolvida por circunstância alguma. Cada situação merece atenção especial, e cada caso terá que assumir as responsabilidades bem como as consequências imputadas a cada um dos envolvidos.

E quanto às pessoas divorciadas? Como Jesus se colocava diante dessa situação?

O movimento de Jesus não fazia acepção de pessoas. Acolhia homens, mulheres, crianças, em igualdade, independentemente de sua posição social ou familiar. Entre seus seguidores e seguidoras encontramos: pessoas pobres, marginalizadas, viúvas, divorciadas ou sozinhas.

Além disso, o movimento de Jesus ressignificou o ambiente da casa. O ambiente principal de atuação das mulheres, agora é mais que o lugar da família, se torna um ambiente para viver e propagar os ensinamentos de Jesus, um local de bom convívio entre iguais, de encontro para fortalecer a fé e a esperança.

Em tempos de distanciamento social, a casa voltou a ser lugar de culto e oração. Foi nas casas, que nesse tempo, a maioria das pessoas viveu sua vida privada e pública. Isso reduziu os laços sociais ao núcleo familiar. Em alguns casos, famílias se fortaleceram. Em outros, conflitos existentes foram elevados ao extremo, evidenciando relações onde não há espaço para o diálogo, o respeito e a igualdade.

Para um casamento duradouro e feliz é necessário que o compromisso do altar seja renovado e vivido diariamente. Que exista disposição para ouvir, respeito, diálogo, afeto, doação, perdão, compreensão, paciência, confiança, igualdade, cuidado mútuo, e não por último, amor.

É importante que levemos desse texto, não uma resposta conclusiva, como “sim” ou “não”, mas aquilo que Jesus queria iluminar: uma situação de profundo sofrimento, violência, injustiça e desigualdade de sua época, provocada pela dureza do coração daqueles que conheciam a teoria de todas as leis; menos da lei do amor. Jesus nos mostra que as leis só passaram a existir por causa dos corações endurecidos. Se o ser humano vivesse a lei do amor (amar a Deus e ao próximo como a si mesmo) em suas relações, então nenhuma lei precisaria existir e ao mesmo tempo todas já estariam cumpridas. Mas por causa da dureza do coração, as leis foram criadas. Acontece que “uma lei injusta não é lei alguma” (Agostinho). E foi essa injustiça na lei que Jesus buscou iluminar.

Independentemente de como uma pessoa vive sua vida, se namorando, casada, solteira, divorciada, viúva ou em um novo casamento, que em sua vida e em suas relações, ela lute contra a dureza em seu coração e busque cumprir, diariamente, a lei do amor, da igualdade, da dignidade, da valorização de toda a forma de vida. Que Deus nos ajude nessa tarefa. Amém.

Candidata ao pastorado Stéfani Niewöhner

São Leopoldo – Rio Grande do Sul (Brasilien)

stefaniniewohner@gmail.com

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