Mateus 25.14-30

Mateus 25.14-30

PRÉDICA PARA O 25. DOMINGO APÓS PENTECOSTES | 19 de novembro de 2023 | Mateus 25.14-30 | Roberto Zwetsch |

Amigas e amigos da Comunidade de fé,

Estamos chegando ao último domingo do ano eclesiástico, que se diferencia do ano civil de uma forma instigadora. De certa forma, a liturgia cristã nos indica que não nos submetemos aos poderes que dominam nossos países e nossas vidas, e seu calendário oficial. Temos espaço litúrgico e de fé para respirar, para refletir juntos, para redescobrir o eixo de nossas vidas e aquilo que – no fundo – nos sustenta como pessoas, como povos e como comunidades. Assim, somos desafiados a manter viva a memória de um Senhor que não tira a vida de ninguém, mas pelo contrário, dá sua vida em resgate das nossas e nos oferece – renovadamente – um caminho de dignidade e reconciliação. Por isso, somos gratos por nos reunirmos em torno da oração e da mesa da Palavra de Deus que nos convoca à solidariedade e à compaixão com todas as pessoas, e nestes tempos de guerra, com quem mais sofre, mulheres, crianças, povos que enfrentam duramente a morte precoce e a destruição de sues modo de vida, inocentemente.

O evangelista Mateus, que vimos seguindo neste ano, nos apresenta mais uma das parábolas do Mestre Jesus, a conhecida parábola dos talentos, mas que eu arrisco denominar de parábola da confiança desmedida. Vocês logo entenderão a razão. Provavelmente, esta narrativa situa-se em ambiente urbano pela linguagem de sua construção. Mas podemos nos equivocar de saída se fazemos comparações superficiais e fáceis com as negociatas que conhecemos dos sistemas econômico e político do nosso tempo. Por isso, sugiro cautela na sua interpretação. Quem sabe assim teremos melhores condições de descobrir sua mensagem sem cair em fáceis armadilhas. É isto que acontece quando nos deixamos iludir pela leitura fundamentalista do evangelho.

Sigamos. Primeiro, estamos diante de uma parábola ou de uma metáfora, uma comparação por meio da qual Jesus nos desafia a compreender o que seja o reino dos céus, conforme Mateus expressa o conceito de reino de Deus. A narrativa ensina qual a atitude que o Senhor espera de nós, seu povo e sua comunidade, quando de seu retorno depois de longa viagem. Alguns pregadores logo intuem que se trata do fim dos tempos quando – numa imagem conhecida – Jesus retornará triunfante vindo do céu em glória e com seus exércitos celestiais. Penso que tal interpretação não ajuda. Ela antes desvia o nosso olhar do que Deus, o Pai, espera de nós. Uma informação histórica da composição do evangelho pode nos ajudar nessa busca. Mateus escreve provavelmente de uma comunidade cristã da Síria e depois da destruição de Jerusalém pelas tropas de ocupação romana comandadas pelo general Tito, no ano 70 da era cristã. Como acontece com a comunidade de Mateus, a maior parte das comunidades cristãs do primeiro século são grupos pequenos, vivendo em contextos de pobreza e muita perseguição. Este é o pano de fundo a partir do qual a comunidade escuta a parábola de Jesus. E quase 50 anos depois da Ressurreição, a prometida segunda vida não acontecia. Como então manter viva a fé, a confiança no Ressuscitado e a vivência do seu amor sem trai-lo? Sem voltar à vida antiga dos deuses da morte e da guerra?

Mateus conhecia a escola judaica dos judeus ortodoxos expatriados. E como eles, também tinha em comum a expectativa messiânica e apocalíptica da proximidade do fim. Mas se o fim demora, Mateus precisava reinterpretar essa teologia a partir da mensagem de Jesus. E ele então lembrou e anotou: o dia do Senhor vem como ladrão da noite, de surpresa, e não da forma espetacular como aparece em alguns textos. Por isso, ele repetiu o dito de Jesus várias vezes: Vigiem! Fiquem alertas! (24.42; 25.13, 26.38 e 41). Amem e sejam misericordiosos como o pai de vocês! (Mateus 5). Por isso também na parábola seguinte ao texto de hoje ele adverte: Quando vocês me viram? Ora, toda a vez que vocês fizeram isto a um desses pequeninos (dar pão a quem tem fome, água a quem tem sede, acolher estrangeiros, vestir quem está nu e passa frio, visitar enfermos e quem está na prisão), foi a mim que vocês o fizeram (25.35s).

Notem bem, amigas e amigos, Jesus não fala exclusivamente de pessoas crentes da comunidade.. Ele aponta para uma fraternidade que ultrapassa as fronteiras da igreja, da etnia, do povo, da nação, da classe social, do gênero. Jesus desafia para uma vivência do amor e do serviço o mais aberta possível, ampla, irrestrita, sem cobranças. E isto pareceu escandaloso no seu tempo e ainda hoje. Com este ensinamento, Jesus assume a Lei judaica, mas a reinterpreta e a radicaliza colocando no centro não o livro sagrado nem o templo¸ que naquele momento já fora destruído. No centro de sua mensagem estão os pequeninos (11.25; 18.3; 25.45),  os que tem fome e sede de justiça, os mansos e misericordiosos(Mateus 5), as pessoas sem poder. Esta mensagem tem consequências e se torna chave para a caminhada cristã.

Vamos à parábola dos talentos, então. Um estudioso mostrou que esta palavra grega não diz respeito a um tipo de poder secular, mas antes a uma atitude, uma capacidade (dynamis) criativa que aponta para uma ação, um poder fazer. Muito se discutiu sobre qual seria o valor monetário do talento. Alguns autores dizem que poderia valer 20 kg de ouro, outro, 35 kg de prata, e outro ainda mil denários. Se um denário equivalia a um dia de trabalho, seriam mil dias de trabalho! Então, o que depreendo é que talento aqui é mesmo uma figura, uma comparação para dizer que o patrão colocou nas mãos dos seus empregados um valor inestimável, desmedido. E o mais estranho, ele não dá nenhuma explicação de como trabalharcom este talento. Quer dizer, ele entrega seu tesouro, confia nos seus empregados e vai embora. O que cada qual fará com o tesouro é da sua conta. Nos versos 16 a 22 temos a narrativa de como dois dos empregados empregaram o que receberam. Esses trabalham criativamente o recebido, negociaram, fizeram multiplicar o valor, demonstrando confiança na justiça do patrão. O terceiro agiu diferente: cavou um buraco na terra e escondeu o que recebera do patrão. No retorno do patrão, o que recebeu 5 talentos, entregou outros 5. Recebeu como resposta: Muito bem, servidor bom e fiel. Foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra na alegria do teu senhor. O mesmo aconteceu com o que recebeu 2 talentos. Estranha a frase sobre o pouco e o muito. De qualquer forma, já sabemos que um talento é um bem de grande valor.

Mas a resposta do senhor é surpreendente. Ela foge da lógica comercial e econômica vigente. Por isso eu dizia no início: cautela na interpretação. O senhor ou patrão não retribuiu com mais talentos, mais riqueza, mais tesouros. Isto significa que a parábola de Jesus desfaz a teologia da retribuição, tão presente no livro de Jó. Hoje, se pode dizer que Jesus acaba com a Teologia da prosperidade tão forte em muitas igrejas cristãs dos nossos dias, principalmente neopentecostais. A promessa do evangelho é outra bem diferente. O senhor ou patrão afirma aos seus servidores fiéis: Entrem na alegria do seu senhor! Venham sentar-se à mesa e desfrutem de minha companhia, de minha alegria, de alegria da minha casa, do meu reino. Vejam, aqui temos uma figura maravilhosa do reino dos céus, do reino de Deus. Reino de Deus acontece na alegria da presença de Deus no meio de nós, na alegria de seu convite para desfrutar da sua comunhão, da sua mesa. Eis o dia de Senhor acontecendo hoje, aqui e não apenas num futuro distante que ninguém conhece nem sabe quando acontecerá.

E o que aconteceu com o terceiro servidor? Para ele, sobra a tristeza e a exclusão, lamentavelmente. É duro deter-nos nessa parte, mas ela está aí para nos abrir os olhos. E o que motivou a atitude desse servidor? Ele mesmo explica: Sei que és um homem duro, que ceifas onde não semeaste e reúnes de onde não espalhaste; então com medo, fui e escondi na terra o teu talento; olha, aqui o tens. Na sua cegueira, ele pensou: pelo menos não perdi nada, não fiz mau uso do que recebi. Devolvo o que me foi dado e acabou. Fico bem com meu senhor. Ocorre que o senhor não aceitou tal disparate. E disse: se você sabia que sou duro e colho onde não semeei, e reúno onde não espalhei, por que não negociou com os banqueiros o que eu lhe entreguei? Pelo menos, eu teria recebido o que é meu com juro.

Mateus vai mais longe e afirma que não só o tal servidor foi severamente repreendido, como perdeu até aquilo que tinha e depois foi lançado ao relento, sem nada. E o pouco que tinha ainda foi entregue ao que mais fizera aumentar os talentos recebidos. O que sobrou para este servidor que sucumbiu ao medo e não confiou no patrão foi choro e ranger de dentes. Exclusão.

Como entender uma parábola dessas na boca de Jesus, que pregou o amor e a misericórdia? Eis o desafio para nós hoje. Se os primeiros servidores entenderam que os talentos foram entregues como capacidade para servir, para amar os semelhantes, e assim souberam ser dignos de entregar novos talentos para o senhor¸ isto é, pessoas que como eles confiam no senhor e o servem servindo aos demais; o terceiro não entendeu a mensagem, deixou-se dominar por um medo infundado, que o paralisou e fez voltar-se unicamente para o seu próprio umbigo, para os seus próprios interesses, tornando-se incapaz de olhar em volta, descobrindo e enxergando as tarefas que poderia realizar com liberdade, ousadia, fé, amor e compaixão. Afinal, o senhor não havia determinado o que fazer com o talento, com a capacidade de agir que o servidor apresentava. O que fazer dependia dele mesmo, de sua visão da realidade em volta dele, do horizonte aberto por seu projeto de vida, pela fé que abraçou um dia. Ele não havia aprendido algo fundamental que Jesus ensinara ao seu pequeno grupo: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque ocultaste estas cousas aos sábios e entendidos, e as revelaste aos pequeninos. Sim, ó Pai, porque assim foi do teu agrado (11,25s).

Entendo que esta mensagem é tremendamente atual hoje. Deus, o Pai, não olha para nossa piedade, nossas muitas orações, os muitos cultos, ritos e obras faraônicas, normalmente feitas em seu nome. O seu critério de fidelidade é outro. Se os talentos que recebemos de Deus demonstram uma confiança sem limites de Deus em nós, se esses talentos se tornam para nós algo de grande valor, de um valor desmedido, como fazer jus a tal confiança que Deus deposita em nós?

Se eu pudesse usar uma metáfora de hoje em dia, uma figura conhecida, eu diria que o talento que recebemos hoje de Deus, o seu tesouro, não é prosperidade ou uma bela propriedade, mas antes algo como a capacidade de agir segundo a sua justiça  (Mateus 6.33), uma plataforma para praticar a justiça que restaura vidas, que dignifica mulheres, crianças e homens frágeis, vulneráveis, sem valor na nossa sociedade dominada pelo dinheiro e pelo sucesso. Perante Deus, tudo isso é efêmero, sem valor. Para ele, o valor maior é a vida humana em plenitude, resgatada do fundo do poço para viver na luz do sol de sua justiça; para participar da alegria do seu reino, já agora e depois para sempre. É por isso que fica o desafio e o convite: Trabalhem os seus talentos com liberdade, ousadia e compaixão. E no final vocês ouvirão: Entrem na alegria do seu senhor! Amém.

  1. Dr. Roberto Ervino Zwetsch

Pelotas – Rio Grande do Sul (Brasilien)

rezwetsch@gmail.com

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