Gênesis 2.15-17

Gênesis 2.15-17

PRÉDICA PARA O 1º DOMINGO NA QUARESMA | 26/02/2023 | Gênesis 2.15-17; 3.1-7 | Teobaldo Witter |

Oração: Deus criador, tu criaste todas as coisas belas, agradáveis, desejáveis. Intercedo que cuidas de tua comunidade para que ela possa, em tua criação, ser sal da terra e luz do mundo.  Assiste com teu espírito o momento deste culto. Prepara o coração e mente para que sejam “terra” boa, e tempo adequado para que a tua palavra possa nascer, crescer e produzir os frutos no devido tempo que tu queres. Abre nossos lábios e que possamos ser testemunhas das tuas boas notícias de vida e salvação. Amém.

Amada comunidade de Jesus Cristo!

Deus criou tudo perfeito. A terra, sem forma, vazia, dominada por trevas sobre a face do abismo (Gn 1.1) isto é, do caos, Deus, por sua Palavra e ação misericordiosa, criou vida e as melhores condições para que ela fosse possível ser vivida com dignidade e respeito. A raça humana ganhou a missão de cuidar da sinergia na criação. Pode, perfeitamente, cuidar e cultivar o Jardim que Deus criou e no qual foi inserido. Recebeu todas as condições necessárias para a vida plena e abundante (João 11.10).

Árvore do conhecimento no meio do jardim, certamente, provocou admiração e despertou desejos de poder, de querer ser deus.  “Mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). A afirmação “árvore do conhecimento” provoca imaginações diversas em diferentes culturas, em áreas de conhecimento como o religioso, psicologia, sociologia, economia, filosofia, astrologia e outras. E tem seus significados próprios. Neste texto, vem acompanhado de limites para os humanos. Devem ter cuidado. Não mexer onde não seria possível: “comer de seu fruto”. Mas Adão e Eva desconfiaram de Deus, não deram ouvidos, não prestaram atenção. Desconfiando de Deus, desobedeceram.

Paraíso, o Jardin de Deus, é a mensagem de boa criação.  Deus criou e colocou o ser humano em sua boa criação para que a cuidasse e cultivasse. No entanto, o ser humano quer mais, pois,  quer ser deus. Ouve desconfiança por parte do ser humano. A serpente é responsabilizada.  Ela é acusada pelo ser humano como instrumento de sabotagem do sistema de vida digna no Paraíso. Neste sentido, os textos das leituras são emblemáticos. Em Mateus 4.1-11, Jesus se encontra em tempos difíceis, de sofrimento, fome, dúvidas. Entra em cena outro personagem (tentador-v.33; diabo, v.5 e v.8; satanás, v.10). Parece ser sempre o mesmo personagem. Apesar de não se mencionar a serpente, a argumentação é idêntica nos dois casos. Mas as posturas são diferentes. No primeiro caso, o ser humano permite ceder as argumentações da serpente. Com isso, o caos se instala. No segundo caso, Jesus Cristo não cede. Por isso, é servido por anjos. Romanos 5.12-19, em resumo, expressa a condição humana e a generosidade de Deus, que nos oferece a nova oportunidade de amor, que se efetiva em Jesus Cristo, o novo Adão.

Portanto, assim como uma só desobediência resultou na condenação de todos os seres humanos, assim também um só ato de justiça resultou na justificação que traz vida… (Rm 5.18). Pela desobediência de Adão e Eva a humanidade se fez pecadora, assim também por meio da obediência de Jesus Cristo muitos serão feitos justos. Agora, a misericórdia divina é o principal valor fundante do novo Reino de Deus. No Tempo na Quaresma, nós consideramos importante meditar sobre a trajetória humana a partir dos relatos da inserção na criação e da Misericórdia divina. Portanto, os textos nos confrontam em dois mundos, dois governos: o governo de Adão, seduzido pela serpente, fora do paraíso, (o velho Adão e velha Eva) que nos faz seres humanos pecadores pela desobediência; e o governo de Jesus Cristo (o novo Adão), o Justo, que nos liberta por sua obediência e nos leva de volta para casa do Pai.

No Éden, seres humanos e o poder da sedução se encontram.  “Então, a serpente disse à mulher: É certo que não morrereis. Porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se vos abrirão os olhos e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal (Gn 3.5)

A serpente está presente na história da humanidade em todos os tempos e lugares.  Na Grécia antiga, a serpente era associada a Asclépio,  o “deus” da cura. Conta a mitologia que ele nasceu em meio a dores e sofrimentos, filho do Sol e da Sabedoria, da mãe já morta. No panteão, Asclépio contém a dualidade em seu mecanismo de defesa: o veneno – mal e cura –, e a árvore da vida, bem como a sabedoria.

No texto, está presente a visão interpretativa da serpente como um símbolo negativo, como veículo usado tentar e para causar a queda da humanidade. Mas tem outras interpretações. Jesus se refere à serpente como ser prudente: “Eis que eu vos envio como ovelhas no meio de lobos. Sede, portanto, prudentes como as serpentes e simples como as pombas” (Mateus 10.16).

No Egito Antigo, serpentes eram utilizados, principalmente, pelos faraós, como amuleto de proteção.  Entendiam que serpentes possuíam poderosas energias que bloqueariam energias negativas.  Para alguns povos nórdicos, a serpente é símbolo da trapaça.

 Há outras e diversas interpretações. No entanto, a serpente simboliza a força vital, o renascimento, a renovação, a criação, a vida, a sensualidade, a dualidade, o engano, a luz, a escuridão, o mistério, a tentação, a morte, a destruição.

No entanto, não se trata de um defeito da criação da serpente, mas de decisões humanas. As interpretações e as simbologias são obras humanas. O sentido humano faz ídolos em quem deposita confiança e/ou culpa pelos seus próprios pecados, seus fracassos.  A serpente, por sua vez, é parte significativa da boa criação de Deus. E viu Deus que era muito bom (Gn 1.31). A serpente goza do pleno reconhecimento do Criador.

O projeto de vida digna para o ser humano e a natureza foi pensado e criado por Deus. Estava perfeito. Era o Paraíso, ou seja, lugar, território de bem-aventurança e plena felicidade. Deus, o Criador, estabeleceu alguns limites para que a vida funcionasse como pensado em suas gênese. Isso exige fidelidade ao princípio de não comer dos frutos da árvore que está no meio do Éden. Mas o ser humano entra em cena e confronta-se com um projeto diferente daquele traçado por Javé. Está aí a novidade: o projeto da serpente. Faz parte da criação divina. Ela é personagem estranha, mas conhecida do ser humano. Ela se apresenta para cancelar a ordem do criador. Esse versículo está diretamente relacionado a 2.16-17 ao recuperar os “mandamentos” ali declarados. Nessa narrativa, a serpente apenas relembra as instruções dadas por Deus. Portanto, ela conhece o texto sagrado e faz uso dele para seduzir, enganar e transformar os termos dos valores.  A serpente faz parte da tradição de Israel e é mencionada em diferentes contextos. Nos textos das escrituras ela é mencionada mais de vinte vezes.  Mas, também, diferentes culturas religiosas, políticas, sociais, econômicas ela não é apenas um animal ágil, prudente, sagaz, esperta, de sentidos aguçados. Sua imagem símbolo de poder, glória e honra.  A serpente é o símbolo do poder do soberano do Egito, o Faraó, líder da maior potência mundial da época. Os reis Davi e Salomão, entre outros, alimentam-se da fonte de sabedoria e poder egípcio.  O jardim faz parte do território do palácio. E as princesas representam um sentido de sedução, no jardim. São importantes para assegurar o poder do rei.  A monarquia de Israel cedeu aos encantos dos grandes impérios da época. A humanidade, representada em Adão e Eva, cedeu às palavras, às melodias e aos encantos das serpentes dos impérios.

A serpente teve um gabinete paralelo no governo de Deus. Contradizendo o mandamento do Criador de não comer fruto da árvore do conhecimento, este gabinete cresceu e criou suas próprias estratégias para impor interesses opostos a Deus. A argumentação para o convencimento envolve o belo, agradável e desejável.  De qualquer forma, Eva e Adão se deixaram convencer pela serpente que apresentou a tese sobre Deus que teria suas estratégias e mantém oculto o que há de melhor. E não permitiria que eles teriam parte plena no reino divino. De qualquer forma, eles têm tudo, mas querem mais. O que querem não são direitos à vida, direitos humanos, mas privilégios de dominar, de explorar, de ser deus, de ter todo domínio sobre a natureza. Quando conseguiram, se tornaram seres naturais, sem condições de viverem no Paraiso de Deus. E veio a condição humana que exige atividades próprias: a vida biológica, a mundanidade, a natalidade, a mortalidade, o condicionamento e o cuidar. O campo de luta, que seria batalha pelo conhecimento do bem e do mal, e se torna deus, mas não deu certo. Contudo, Deus permitiu que o ser humano tivesse continuidade. O conhecimento, nesta realidade pós-serpente, significa a capacidade humana de entender, apreender e compreender as coisas e viver na realidade de conflitos, de morte e de vida.

As condições humanas são as condições nas quais a vida é dada ao ser humano na Terra, e cada uma gera e exige atividades próprias. Tocar a vida excluída do Éden significa vida natural, sujeita às leis da natureza. Por vida natural, a Confissão de Augsburgo exclui Jesus Cristo (Nota 12 do 2 Artigo: Do pecado original). Desse abismo ninguém sai sozinho, nem por forças humanas ou da natureza, somente pela ação na vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, mediante o Batismo e o Espírito Santo. Portanto, o gabinete paralelo da serpente deu golpe em Deus e jogou a humanidade no abismo da morte e do sofrimento.

A convivência deve se dar em confiança mútua. Seres humanos que confiam em Deus cuidam e guardam o jardim, também, hoje.  A confiança é necessária e fundamental em todas as relações. Não há relações livres se não forem construídas com base na confiança.  A palavra confiança, o verbo confiar  tem origem no latim confidere, que significa “acreditar plenamente, com firmeza”. O sufixo “fidere” significa fé, por isso a palavra confiar é usada, também, como sinônimo de fé. A palavra fé tem origem no Grego „pistia“ que indica a noção de acreditar e no Latim „fides“, que remete para uma atitude de fidelidade. No Éden, Deus criou todas as coisas para que a bem-aventurança fosse possível, completa e plena. Mas a serpente desconstruiu as relações de confiança, lançando as dúvidas na cabeça e no coração humano. A esperança, hoje, é reconstruir a confiança em Deus. Jesus, o novo Adão, ensina: “Tenham fé em Deus”, Marcos 11.22b. E Deus confirma: “Este é meu Filho amado, a ele ouviu” (Marcos 9.7). O Paraiso não é somente saudade, mas, também, esperançar. Em nossa obediência à Palavra, Deus possibilita nosso acesso ao novo céu e nova terra (Apocalipse 21.1ss).

A humanidade continua em estado de desconfiança e de desobediência. Não dá atenção à sua missão de cuidar, respeitar e preservar. Pelo contrário, explora, devasta, desordena. A crise climática é consequência do pecado humano.  A relação pecaminosa da humanidade com a natureza produz caos no planeta. O caos manifesta-se nas tragédias humanitárias, civilizatórias, ambientais.  Misericórdia quero, ensina Jesus Cristo. “Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não holocaustos” (Mt 9.13).  Cuidar e preservar a natureza significa, também, cuidar da humanidade. Crer e confiar em Jesus Cristo significa, também, lutar por justiça climática e ambiental. Deus nos abençoe. Amém.

 Pastor Teobaldo Witter

Cuiabá – Mato Grosso (Brasilien)

Maninha.pancinha@hotmail.com

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