Hebreus 4.12-16

Hebreus 4.12-16

PRÉDICA PARA O 20º DOMINGO APÓS PENTECOSTES – 10 de outubro de 2021 | Hebreus 4.12-16 | Romeu Ruben Martini |

Aos 65 anos de idade, flagro-me seguidamente com lembranças de um tempo passado. Comparo costumes, modas, tradições com os dias atuais. Por isso, há momentos em que lembro que “meu pai dizia …”. Pois hoje estamos diante de um texto bíblico que faz esse exercício de lembrar tempos passados e comparar gerações. Trata-se de um texto da carta aos Hebreus.

Estudiosos não sabem dizer exatamente quem escreveu essa carta, nem pra quem especificamente a carta foi escrita. Mas há concordância que a carta teria sido escrita entre os anos 70 e 90 d. C. E isso revela dois detalhes importantes: (1) as pessoas que receberam essa carta já formavam a segunda geração do povo cristão; (2) nesse período, havia dura perseguição das pessoas que professavam a fé em Jesus Cristo.

E o que essa segunda geração experimentava em termos de fé num tempo de perseguição?

A carta revela um certo cansaço na vida de fé dessa segunda geração. Na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue, escreve o autor (12.4). Em meio à perseguição, essa geração não queria mais arriscar a vida por causa da fé. Mas a carta pede: Importa que nos agarremos, com mais firmeza, às verdades ouvidas e jamais nos desviemos delas (2.1). Irmãos, que nunca haja em qualquer de vós um coração mau e infiel, para se apartar do Deus vivo (3.12).

As consequências desse cansaço na fé e dessa infidelidade a Deus são demonstradas com o exemplo do povo hebreu a caminho da terra prometida. Muitos dos que saíram a escravidão do Egito não alcançaram a terra prometida porque desobedeceram e pecaram, lembra o autor (3.16ss). Daí que ele procura animar as comunidades da segunda geração, lembrando o Salmo 95: O Senhor é o nosso Deus. Nós somos as ovelhas em suas mãos. Por isso, não endureçam o vosso coração” (7-8).

Pessoas que não haviam tido contato direto com Jesus e com seus discípulos e que formavam a segunda geração de cristãos estão abandonando a fé e a obediência a Deus em meio à perseguição. Dá para entender. Ou? Qual seria nosso comportamento, se fôssemos perseguidos por crer em Deus?

Diante desse abandono da fé, o autor da carta escreve: desse jeito vocês não vão conseguir entrar no “descanso de Deus”. O que seria esse “descanso de Deus”, e o que o autor pede das comunidades?

Ouçamos o texto previsto para a prédica deste domingo: Hebreus 4.12-16. (leitura) Destaco:

(1) a palavra de Deus é viva, ela corta, divide, cala fundo, ajuda a discernir (raciocinar; distinguir o certo do errado) o que nos diz o coração (v. 12). Quero entender este versículo a partir de algo que nós conhecemos. Falo dos 10 Mandamentos. Os Mandamentos nos mostram como a palavra de Deus é viva, como ela corta e como ela ajuda a distinguir o certo do errado. Pensem comigo: se o quarto Mandamento fosse obedecido (Honrarás teu pai e tua mãe), existiriam pessoas idosas vivendo na solidão, abandonadas em asilos, com sua aposentadoria roubada por alguém da família? E se o nono Mandamento fosse levado a sério (Não deseje possuir a casa do próximo)? Lutero explicou esse Mandamento assim: Devemos temer e amar a Deus e, por isso, não tentar conseguir com esperteza a herança ou a casa do nosso próximo nem nos apoderar delas como se tivéssemos direito a isso; mas devemos ajudar a cooperar para que possa conservá-las. E o quinto Mandamento. Ouvistes o que foi dito aos antigos: Não matarás, disse Jesus. Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se irar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer um que disser um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento no tribunal (Mateus 5.21-22). Está aí, bem claro: a palavra de Deus corta fundo e nos permite discernir o certo do errado.

(2) por isso vem a segunda observação do texto: Aquele a quem um dia temos que prestar contas vê tudo, e sabe de tudo. Tudo que fazemos e deixamos de fazer está descoberto aos olhos de Deus (v. 13). Em português simples: nossa vida é uma panela sem tampa perante Deus.

(3) v. 14: por isso a carta encoraja: vocês têm Jesus como grande sacerdote; vocês têm ninguém menos que Jesus como luz lá no horizonte que guia vocês no caminho da vida. Por isso, fiquem firmes na fé que vocês professaram um dia. Não busquem desvio; não se acovardem diante do mal.

(4) v. 15: a carta admite que as pessoas que creem em Jesus podem fraquejar. Sim, pessoas com fé em Deus não são superstar! Homem aranha! Mulher maravilha! Nós fraquejamos… diante da dor, diante do luto. Temos fases de crise na fé. Onde está Deus?, Quantas vezes perguntamos. Mas a carta diz: nas horas em que fraquejamos e desesperamos, Ele, o sumo sacerdote, Jesus, se compadece de nós e nos carrega. É o que expressa o P. Rodolfo Gaede em sua Oração do Cuidado: Se eu cair, permite que eu caia em tuas mãos. Se eu permanecer caído, dá-me a tua companhia. Seja como for, cobre-me com o manto do teu amor. Quantas vezes cantamos o hino: Por tua mão me guia… So nimm denn meine Hände und führe mich. O que é isso? Confiança, mesmo na pior situação.

(5) é por isso que o trecho da carta que hoje ouvimos termina assim: vamos nos achegar ao trono da graça; vamos sempre ficar próximos de Deus, através de Jesus. Confiemos. Dele teremos sempre a misericórdia, ou seja: Deus sempre vai voltar seu coração para lá onde a vida dói. Dele vem o socorro quando fraquejamos (v. 16).

No início desta prédica lembrei de que seguidamente fazemos comparações entre gerações. O meu pai contava…. Minha vó dizia…. Na medida em que fiquei mais velho, fui me dando conta das tantas lições positivas que aprendi do pai, da mãe, do vô e da vó com os quais convivi. Eles também erraram. Mas tiveram razão em muita coisa.

Pois o autor da carta aos Hebreus faz algo semelhante, até muito mais profundo. Para orientar e encorajar as pessoas cristãs da segunda geração, ele lembra não somente de Jesus, mas volta mais ainda no tempo e fala da presença de Deus junto ao povo hebreu. Lembrem-se, diz o autor: – Não esqueçam o que vocês já tinham ouvido e crido! Vocês sabem. E também sabem que ser testemunha de Jesus neste mundo pode complicar nossa vida.

A carta aos Hebreus fala de algo parecido ao que sucedeu com as famílias luteranas que vieram ao Brasil a partir de 1824. Por não pertencerem à religião oficial, sofreram muito. Mesmo assim, a história desse povo revela profundos e comoventes testemunhos de fé dessa gente. Por tua mão me guia…. Não cansaram de cantar. E assim se agarraram em Deus.

Vocês recordam que antes eu falei que o autor da carta aos Hebreus escreveu: se vocês abandonarem a fé, vocês não vão conseguir entrar no “descanso de Deus”. O que seria esse “descanso de Deus”?

Lendo os 13 capítulos da carta aos Hebreus, compreende-se que esse “descanso de Deus” refere-se (a) ao descanso de Deus no sétimo dia na história da Criação (4.4). E isso nos faz lembrar o terceiro Mandamento, o direito ao culto e ao descanso semanal digno; (b) o “descanso de Deus” também lembra o descanso prometido quando o povo saído da escravidão alcançaria a terra em que mana leite e mel; (c) e o “descanso de Deus” ainda remete ao descanso na eternidade, pois Cristo, através do seu sofrimento, é o autor da “salvação [descanso!] eterna” (5.9).

Portanto, se o autor da carta escreve para exortar a segunda geração a ficar firme na fé, ele exorta porque crê que a fidelidade em Jesus dá a possibilidade real de experimentar o “descanso de Deus”, a começar nesta vida. O descanso – como descrito acima – existe como possibilidade real. “Hoje, se ouvirdes sua voz” (3.7). E esse “hoje” é repetido na carta (4.7; 13.15). E a luz que guia, orienta e sustenta nesse caminho para o descanso de Deus é a Palavra de Deus (12-13).

Harvey Cox (teólogo norte-americano), em O futuro da fé, referindo-se ao papel da religião (também o cristianismo), diz: sua “premissa não é apenas um conjunto de atos e de crenças, mas um modo abrangente de vida. (…) não é apenas um conjunto de obrigações rituais, mas uma comunidade e um modo de servir Deus e o próximo” (p. 274).

Fernando Schüler (filósofo e cientista político brasileiro) escreveu: A pandemia fará crescer nosso senso de interdependência. ‘Mesmo a pessoa mais rica do mundo desenvolvido terá um interesse racional em proteger o indivíduo mais vulnerável, no país mais pobre’ (citando Yuval Noah Harari). Pela simples razão de que o vírus não respeita geografia ou posição social, e nos torna todos vulneráveis. Daí o sentido da cooperação global que marca o processo de pesquisa, produção e distribuição de vacinas, assim como processos muito mais amplos de assistência e ajuda internacional (Revista Fronteiras do Pensamento, ZH, 21-22.08.2021, p. 3).

Dois pensadores da atualidade dão dicas concretas sobre o que e como fazer para tornar real o “descanso de Deus”. O convite da carta aos Hebreus renova-se hoje para nós: Faz sentido ficar firme na fé. “Procuremos, pois, entrar naquele descanso!” (4.11).

E a paz de Deus, que ultrapassa o nosso conhecimento, guarde e guie nossos pensamentos e ações.

Amém.

P. Dr. Romeu Ruben Martini

Porto Alegre – Rio Grande do Sul (Brasilien)

romeurubenmartini@gmail.com

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