João 8.31-36

João 8.31-36

PRÉDICA PARA O DIA DA REFORMA – 31 de outubro de 2021 | João 8.31-36 | Gottfried Brakemeier |

Prezada comunidade!

O dia da Reforma é um dia difícil. A comunidade luterana celebra neste dia o início daquele movimento que, a quinhentos anos atrás, deu uma guinada diferente no rumo da Igreja de Cristo. Lutero e seus companheiros de luta inauguraram uma profunda revisão no modo de ser da Igreja de seu tempo. Mas de imediato somos questionados. Já não se fala no “dia da Reforma” e, sim, no “dia das bruxas e dos bruxos”. O modelo é o que nos Estados Unidos se chama “halloween”. Parece ser mais bonito reverenciar bruxas e bruxos do que ocupar-se com a herança dos reformadores. Só que bruxos não mudam nada no curso da história. Servem antes para a “farra” do que para a avaliação crítica da realidade. É preferível, pois, permanecer com a designação “dia da Reforma”. Como luteranos não podemos concordar com que bruxas e bruxos nos roubem este dia comemorativo.

Mas também por parte da Igreja Católica provém questionamentos. A Reforma tem sido um processo polêmico, até mesmo traumático para a Igreja da época. Lutero acabou condenado, excomungado, um juízo, aliás, que até hoje não foi revogado. Não foi que a Reforma rachou a Igreja e conduziu a deploráveis guerras religiosas? Para tanto Lutero e os demais reformadores estão sendo responsabilizados. Por isto, assim se diz, seria inadequado celebrar a lembrança deste conflito em termos de um “jubileu”. A Reforma não teria nada de “jubiloso”. Até hoje ela é sentida por muitos católicos como agressão. Porventura, será o dia da Reforma um dia “anticatólico”?

Ora, entrementes já não mais se pensa assim. O esforço ecumênico mudou também a imagem da Reforma. Fato é que ela não só deu origem a igrejas declaradamente “luteranas”, respectivamente “protestantes”, como teve também efeitos reformadores na própria Igreja Católica. Ao desafio luterano a Igreja de Roma não podia deixar de reagir e proceder por sua vez a reformas internas. Marcos importantes nesta caminhada são o Concílio de Trento no século 16 e o Segundo Concílio Vaticano no século 20. De qualquer maneira, a Igreja Católica hoje já não mais é a mesma como há quinhentos anos atrás. Algo semelhante vale para as igrejas protestantes. Nenhuma igreja comprometida com o evangelho pode ficar parada no tempo. Nós nos alegramos por uma significativa aproximação das Igrejas em passado e presente que permite celebrar o dia da Reforma juntos.

E é exatamente assim que este dia pode desenvolver toda sua dinâmica. Pois ele é oportunidade para auscultar novamente o evangelho, assim como Lutero o quis e todos os movimentos reformadores desde então. Para tanto é sugerido para reflexão e pregação um texto do evangelho de João, a saber cap. 8,31-36. Ouçamos o que o evangelista escreve:

Jesus promete liberdade a seus discípulos. Trata-se de um dos eminentes dons do evangelho. Isto se eles se comprometerem com a verdade. Foi o que a Reforma fez: Libertou o povo cristão de indevida tutela religiosa. Com alguma razão pode-se entender a Reforma desencadeada por Lutero como um grande movimento libertador. Desobrigou o clero a se submeter à lei do celibato, libertou o povo do medo do purgatório, acabou com a ameaça de castigos infernais para pecados mais ou menos leves. De um modo geral deve-se constatar que a Reforma emancipou o povo cristão da dependência da Igreja. Sem ela, assim se dizia, não poderia haver salvação. Pois ela administrava os sacramentos, indispensáveis para herdar a vida eterna. Ai de quem a Igreja excluía do sacramento. Estaria no caminho certo da perdição.

É o que Lutero questionou. Não é a Igreja que salva, nem mesmo o sacramento tem este poder. Seja o batismo, a eucaristia, a penitência, tudo isto é extremamente importante, mas não decisivo. Pois o ser humano é salvo por graça e por fé. Não são as obras que salvam o ser humano, nem receita mágica capaz de ser manipulada pelo clero, e, sim, unicamente a misericórdia divina. Entre os numerosos comprovantes bíblicos eu me limito a citar uma única passagem: Na carta do apóstolo Paulo aos Efésios, cap. 2.5 diz: “… pela graça vocês são salvos”. E é essa a linha mestra de todo o Novo Testamento. O testemunho cristão exalta o milagre da graça de Deus. Não existe outro jeito de conseguir o agrado de Deus a não ser a própria bondade daquele a quem invocamos como “Pai Nosso”. É esta a “verdade” que liberta e da qual fala o evangelista João. Não podemos salvar-nos por própria razão ou força, respectivamente pelo nosso esforço moral. Dependemos da ação graciosa de Deus.

Mesmo assim, engana-se quem acha não haver nenhuma condição a cumprir. Pois a graça de Deus deve ser acolhida pela fé. É esta a outra ênfase do Novo Testamento. Novamente cito uma só passagem bíblica. Na carta aos romanos o apóstolo Paulo afirma: “Concluímos, pois, que o ser humano é justificado pela fé, independentemente das obras da lei” (cap. 3.28). Além das “obras da lei” ele poderia ter mencionado também as obras sacramentais, manejadas pela Igreja. O que importa mesmo é a fé das pessoas. E esta é em tudo o contrário de uma obra meritória. É bom não confundir. Pois quem crê, confia. Só isto! Não se trata de uma obra de que o ser humano possa gloriar-se. Fé é a atitude de quem espera receber. Assim aconteceu no caso das pessoas que se dirigiram a Jesus. Queriam ajuda. Assim acontece sempre que nos dirigimos em oração a Deus e trazemos diante dele nossas preces. Nós o fazemos na esperança de que ele nos estenda a mão.

Por isto mesmo a atitude mais condizente com a fé não é a vanglória e, sim, a gratidão. Nós agradecemos a Deus por ter despertado a fé em nós. Nós lhe agradecemos pelos tantos outros benefícios que dele recebemos. Não por último, pela possibilidade de podermos confiar nele integralmente. Exemplo especialmente instrutivo é o do samaritano que, vendo-se curado da lepra, voltou, glorificando a Deus e, em gesto de gratidão, se prostrou aos pés de Jesus (Lc 17,11-19). Este homem viu seu anseio atendido pela fé que depositou em Jesus. Foi a verdade que o libertou. No mais é importante, sublinhar que o que se pretende, é uma fé consciente, não imposta, não  forçada, não subalterna. A Reforma promoveu a fé responsabilizada pelo próprio crente. Também neste sentido a Reforma tem sido um grande movimento libertador. Doravante não seria suficiente dizer que cremos porque outros creem, respectivamente porque a Igreja assim o diz. Lutero traduziu a Bíblia para munir o povo com o conhecimento sobre as fontes da fé. Ele quer que as pessoas estejam em condições de dizer: Nós cremos, e nós sabemos por quê. Então, se você quiser conhecer as bases da fé, leia a Bíblia. Ali você vai encontrar o registro da verdade que liberta.

Seria trágico, aliás, se transformássemos o dia da Reforma em dia “antijudaico”. Está aí mais outra dificuldade deste dia. De acordo com o evangelista João os parceiros de Jesus, todos eles judeus, alegam não ter necessidade de libertação por terem por pai Abraão. Trata-se de um grande engano. O patriarca não pode garantir liberdade. Exige-se a fé, nada mais e nada menos. À parte dela não há perspectiva de liberdade, nem mesmo de salvação.  Então, ser judeu não é nenhum privilégio. Outros pretensos  privilégios igualmente passam a ser irrelevantes. O ser humano é justificado “sola gratia” e “sola fide”, ou seja, somente por graça e somente pela fé. Também com respeito a isso existe aproximação pelo menos parcial entre as comunidades, a luterana e a israelita. O evangelho não legitima atitude antissemita de qualquer espécie.

Com esses cuidados não há o que impedisse a celebração “jubilosa” do dia da Reforma. Agradecemos pela palavra de Deus que sempre de novo chama a sua Igreja de volta para o caminho da verdade. Que Deus nos abençoe este dia e promova a divulgação da verdade que liberta.

Amém

P. Dr. Gottfried Brakemeier

Nova Petrópolis – Rio Grande do Sul (Brasilien)

brakemeier@terra.com.br

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