Lucas 2. 15-21

Lucas 2. 15-21

PRÉDICA PARA O PRIMEIRO DIA DO ANO DE 2022 | Texto bíblico: Lucas 2. 15-21 | Renato Kuntzer |

Ano Novo, vida nova e bola para frente. Esse sentimento popular otimista é repetido cada ano como um mantra, um chavão decorado. Somos brindados com a  retrospectiva dos principais fatos e acontecimentos e uma série de previsões especulativas em relação ano novo ano. Quem sabe, ao iniciarmos esse ano,  a gente  se oriente pelas previsões de Deus que são bem práticas, sóbrias e realistas.

O texto de Lc 2.15-21  integra o Evangelho da Infância de Jesus (Lucas 1.5-2.52).  Mais do que propriamente fatos históricos, essas narrativas são uma leitura teológica da infância de Jesus, feita a partir das experiências pós pascais da comunidade.  A  história de Jesus é narrada por Lucas de maneira retrospectiva, tendo como ponto de referência a experiência comunitária próxima dos anos 80 d.C.

Não é mero detalhe ou curiosidade o fato de Lucas localizar o evento temporal e geograficamente. Ocorre no tempo do Imperador Augusto e no tempo do governador Quirino. Um evento local que alcança uma importância mundial.  Da localidade de Belém, se estende para o mundo inteiro. Tamanha é a importância do evento que está sendo relatado. Foi naquele tempo e naquele lugar. E o que ali ocorreu tem alcance para todos os tempos, para todos os lugares e para toda a humanidade. Essa é a primeira e importante informação prática e sóbria. Estamos ao alcance de tal acontecimento e estamos incluídos nele. Nós somos envolvidos nesse acontecimento histórico cuja interpretação teológica deixa os ouvintes atônitos, surpresos e admirados. Participam disso céus e terra, toda a humanidade e o universo todo.

O acontecimento se dá em Belém. Isso coloca o acontecimento na tradição do profetismo periférico e popular de Miquéias (Mq 5.1-3). A boa notícia para toda a humanidade vem de Belém, da periferia, de uma aldeia da Judeia. O acontecimento de repercussão universal não se dá em Roma, o centro político; e nem em Jerusalém, o centro religioso. Mas está carregado de sentido político pois Belém é a cidade natal do Rei Davi. Está carregado de sentido religioso pois Belém é “a casa do pão”. É lá que aconteceu o que precisa ser visto.

Os primeiros destinatários da boa notícia foram os pastores de ovelhas, criadores de pequenos animais. São pobres e explorados economicamente, marginalizados  e excluídos pelo legalismo religioso da Lei judaica. Não sei se a gente se dá conta da profundidade que a cena seguinte vai revelar. Trata-se do primeiro encontro que marcará a presença da criança nesse mundo e que irá identificar para todo o sempre o seu rosto e a sua imagem para a humanidade. Os que nada são, os insignificantes,  se encontram diante da cena da criança dentro de um estábulo. Os pobres o veem deitado dentro de um coxo que serve para alimentar os animais. A criança ali dentro de um coxo é o rosto humano do amor de Deus e o rosto divino desse ser humano.

Quando os pastores de ovelhas relatam o que tinham ouvido a respeito dele, dão o primeiro testemunho público de fé e provocam  reações de surpresa e admiração. Acho que o termo apropriado seria de que os ouvintes ficaram atônitos. Até o testemunho dos pastores o acontecimento não havia sido percebido em toda a sua importância. Eles foram para ver. E ao interpretar o acontecimento, fizeram os seus ouvintes ver e perceber o que significava a boa notícia: a cena incomum e escandalosa da criança, o Salvador,  o Messias, o Senhor nascer em um estábulo  e estar deitado num coxo sobre palhas. Há aqui a revelação do mistério da encarnação do próprio Deus. Deus se fez humilde, tornando-se próximo dos mais miseráveis da sociedade.

Isso explica porque Maria guardava todas essas coisas no coração e pensava a respeito delas. Maria juntou e segurou para si essas notícias. Pensava, meditava, juntava com o que já havia ocorrido anteriormente com ela (1.31-33). Eram tantas notícias espantosas que ela precisou de tempo para assimilar, por isso meditou e pensou.

Aos pastores de ovelhas, depois de testemunharem o acontecimento, restou voltarem  aos campos, às suas atividades cotidianas. Não retornaram à sua rotina de qualquer jeito. Não voltaram a velha vida normal.  Voltaram glorificando e louvando a Deus. Sim, a  vida cotidiana continua, mas não na normalidade com que estavam acostumados,  pois nada mais era como antes. Para quem ouviu e viu como eles ouviram e viram, o cotidiano  havia mudado. A vida não é mais a mesma.

No momento seguinte (v.21), oito dias após o nascimento, em cumprimento à Lei judaica,  a criança recebe a circuncisão e o nome de Jesus. Lucas escreve a respeito dele, como sendo o filho primogênito de Maria (2.7), o Salvador, que é Cristo e Senhor (2.11), a criança (2.12,16) e menino (2,21). Só se declarou o nome de Jesus quando de sua circuncisão. O nome revela o extraordinário do que havia acontecido (2.11), no nome Jesus (Yeshua) e de seu significa “Javé é a salvação”. O nome é escolha de Deus (1.31) e é revelação divina que diz a que veio.

Um olhar retrospectivo crítico do ano de 2021  nos fará perceber o quanto usamos e abusamos do nome Jesus. “Em nome de Jesus”. Quantas vezes se ouviu essa expressão, repetida exaustivamente. Como um mantra que, por sua repetição, se crê terá efeitos mágicos e milagrosos. Em nome de Jesus, quem tinha fé, não pegava Covid-19. Em nome de Jesus há autoridades ungidas e eleitas que são intocáveis. Em nome de Jesus se prometeu cura. prosperidade e bênçãos materiais no atual mercado religioso. Em nome de Jesus se praticou a violência seletiva do Estado contra negros, mulheres, crianças empobrecidas e povos indígenas.  Em nome de Jesus sepultamos pessoas vítimas da Covi-19, mulheres vítimas de feminicídios, crianças vítimas de balas perdidas, negros vítimas da violência de agentes de segurança, pessoas que praticaram o suicídio como saída de seus problemas, indígenas e quilombolas vítimas de conflitos de terras.

Sobre Jesus, “Javé é a salvação”,  que estará o Espírito do Senhor para anunciar a Boa Notícia aos pobres, proclamar a libertação aos presos, restaurar a visão aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano de graça do Senhor (Lc 4.18-19) e concluído o seu ministério público com a ressurreição e a ascensão ao céu “eles o adoraram, e depois voltaram para Jerusalém, com grande alegria… bendizendo a Deus” (Lc 24.52). Do início ao fim, o nome de Jesus, provoca adoração, louvor, alegria e bênção aos pobres e excluídos.

A vida continua depois do Natal, mas de um novo jeito, com novos olhares e novas conversar a respeito da revelação do mistério da encarnação de Deus. O acontecimento que motiva essa boa nova é uma criança, um menino, que recebe o nome de Jesus. Testemunhar publicamente que “Javé é a salvação” é acolher o convite para o arrependimento e mudança da vida. Significa libertar-se do pecado, de tudo o que aliena o ser humano e a criação. É conversão que vai além  de exercícios piedosos, da ascese ao mundo, da fidelidade no dízimo, da observância da Lei e pratica do legalismo religioso. A visão que nos proporciona a criança frágil, pobre e humilde, nascida em condições de extrema exclusão; a visão antecipada da cruz e da coroa de espinhos, contrastam com a violência, os excessos e poderes de nossa sociedade e da mesquinhez do ser humano quando perde a sua condição de imagem e semelhança com Deus.

Javé é a salvação e em nome de Jesus, o que é humano se revela: alegria e ira, bondade e dureza, amizade e indignação. Jesus viveu os condicionamentos comuns da vida humana. Confrontou-se com a realidade e a ordem vigente, indignou-se com a situação que envolvia as pessoas. Jesus foi capaz de ver o ser humano maior e mais valioso do que estabelecia e permitia a ordem vigente. Para ele a importância das pessoas está além  dos rótulos sociais, econômicos e religiosos. Se nega a enquadrar as pessoas em esquemas pré-fabricados. A cada qual respeita em sua singularidade.

Só Deus mesmo para fazer uma coisa dessas. Deus vem morar entre nós, sempre o mesmo, verdadeiro, coerente. Sem alarde no palácio, sem mídia global. Assim Jesus vem para estar com as pessoas que ele quer bem. Acabar com a solidão, o medo do futuro, a miséria interna e externa, a injustiça e o ódio entre os diferentes. Onde ele é convidado a entrar, ele arruma a casa. Não nos promete mudos e fundos, mas nos dá a capacidade de viver uma vida renovada. Queremos sim, em nome de Jesus de Nazaré, sermos confrontados com a nossa realidade e sermos chamados à sobriedade do testemunho e louvor que damos a Deus. Essa é a realidade que nos espera em 2022.

P. Renato Kuntzer

Boa Vista do Buricá/RS – Brasil

Renatok06@hotmail.com.br

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