Mateus 18.15-20

Mateus 18.15-20

PRÉDICA PARA O 14. DOMINGO APÓS PENTECOSTES | 10 de setembro de 2023 | Mateus 18.15-20 | Stéfani Niewöhner e Fernando José Matias |

O Evangelho de hoje não é apenas sobre perdão e reconciliação; é uma orientação sobre como manter da comunidade/Igreja a partir da lógica da justiça e do amor, em meio aos seus problemas e conflitos.

O texto não nega haver problemas na comunidade do evangelista; pelo contrário, oferece um passo a passo para lidar com tais problemas/conflitos, visando manter a unidade, mas não qualquer unidade e, sim, uma unidade justa.

Por que falamos de unidade justa?

Olhando para as comunidades pelo mundo, podemos perceber tipos diferentes de se tentar manter a unidade. Há um modelo, por exemplo, que tenta manter a unidade baseada no medo, no silenciamento, no cancelamento, na impossibilidade de diálogo, na impossibilidade de exortação, de denúncia e de anúncio, enfim, na ideia de „varrer a sujeira pra baixo do tapete“ e deixar as coisas quietas como estão. Querer manter uma unidade a partir desses fundamentos é algo corriqueiro, no entanto, frágil, perigoso, danoso, injusto e antievangélico.

Mas há o modelo bíblico, evangélico e cristão, que é aquele que busca construir a unidade baseada na lógica do amor e da justiça. Ele é o oposto do citado anteriormente. A pergunta é: Como queremos edificar e manter a unidade em nossa comunidade? É sobre isso que o evangelho de Mateus nos convida a refletir.

O contexto do evangelho e comunidade de Mateus é importante para compreendermos o tom do nosso texto. Na perícope anterior Jesus fala sobre a ovelha perdida, que, com esforço é procurada, encontrada e trazida de volta ao convívio das demais. O v.14 diz: “Assim, pois, não é da vontade de vosso Pai celeste que pereça um só destes pequeninos”.

Nossa perícope começa com uma instrução de Jesus: “Se teu irmão pecar [contra ti], vai argui-lo (do grego ἔλεγξον, que significa corrigir) entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão”. Observe, embora exista a chance de perdão e reconciliação após correção do pecador que te ouviu; também existe chance de se perder um irmão, uma irmã caso a pessoa não aceite a correção.

Destacamos isso porque muitas vezes esse texto é trabalhado partindo do pressuposto que não existe pecado, pecadinho e pecadão ou como se as consequências de alguns pecados não fossem mais graves e danosas que outros. Obviamente o texto não insiste no diálogo para qualquer tipo de situação. Contudo, apesar de compreendermos que, independentemente do “tamanho”, todo o tipo de pecado nos afasta de Deus, do próximo e de nós mesmos, vale lembrar que existem diferentes tipos de pecado e danos por ele causados, alguns chegando na esfera criminal, por exemplo. Sendo assim, nem sempre é possível a conversa e o diálogo, especialmente se for compreendido que a pessoa ferida deva falar sozinha com aquele que a feriu. Esse texto, então, não é um apelo para evitar denúncias a todo o custo, muito pelo contrário. Alguém que sofre violência, preconceito, abuso, exclusão, injustiça… já arguiu e mesmo assim a situação segue se repetindo, é bem possível que essa pessoa não conseguirá mais resolver apenas conversando com seu agressor, além de correr o risco de sofrer ainda mais com tal atitude. Nesses casos, precisamos chegar no nível da denúncia às instituições competentes.

O que o texto quer orientar, é que existem pecados onde o diálogo e correção são possíveis. Na vida em comunidade se encontram pessoas de diferentes culturas, diferentes tradições, diferentes opiniões. Às vezes, nessa convivência, uma pessoa fere a outra, até sem querer ou sem perceber. Outras vezes, um desentendimento acontece e, por ninguém arguir e intervir do jeito e no momento certo, o conflito vira uma bola de neve. O diálogo pode ser a forma de lidar com esses casos. Assim, a pessoa que ofendeu tem a chance de reconhecer o erro, pedir perdão e ser perdoada. Para esses casos, Jesus recomenda o diálogo particular em primeira instância: “Se o teu irmão pecar, vai argui-lo (corrigi-lo) entre ti e ele só” (v.15). Essa prática de correção fraterna já era conhecida do Antigo Testamento (Lv 19.17) e buscava a admoestação imediata, evitando que o conflito ganhasse grandes proporções e chegasse ao conhecimento de toda a comunidade.

Podemos nos perguntar com quem o versículo está falando. Se a pessoa que deve procurar pecador é a própria pessoa ofendida ou alguém outro que soube ou que foi testemunha do ocorrido. Na versão original, o texto grego traz a expressão εἰς σὲ “contra ti”, entre colchetes. Isso porque alguns manuscritos contém a expressão, outros não. Provavelmente, a expressão “contra ti” se trata de um acréscimo posterior dos copistas. Se lermos com a expressão, podemos deduzir que é a própria pessoa atingida ir ao encontro daquela que lhe ofendeu. Sem a expressão, podemos compreender como uma instrução de Jesus para uma pessoa que soube ou testemunhou o ocorrido procure o agressor, como uma espécie de mediador de conflitos na comunidade. De qualquer forma, quando lemos o texto nos dias de hoje, a injustiça não deve “ser varrida pra baixo do tapete” e é sempre bom levar em conta o tipo de pecado cometido, para então definir quem deve ser essa primeira pessoa a buscar a pessoa pecadora. De acordo com o texto, se essa primeira etapa fosse bem sucedida, o ofensor seria convencido de seus erros e conduzido ao arrependimento.

Mas Jesus também sabia que nem sempre essa atitude de falar em particular daria resultado. Ele então recomenda uma segunda tentativa, dessa vez com duas ou três testemunhas. Se ainda assim, a pessoa não quiser ouvir, o terceiro passo é avisar a Igreja. A comunidade como um todo, assume o papel de confrontar a pessoa pecadora com suas falhas a fim de levá-la ao arrependimento e à reparação de seus pecados. Se a pessoa não quiser ouvir a admoestação da Igreja ela deve ser considerada como um gentio ou publicano, pessoas que, com sua insistência no pecado, se autoexcluem da comunhão e quebram a unidade baseada na justiça e no amor. Ou seja, ver a pessoa como um gentio ou um publicano não significa condená-la à exclusão. Não é você que a está excluindo, mas é a pessoa que se exclui a si mesma, pois não consegue se enquadrar no modelo de unidade justa, proposta por Jesus. Além disso, vale lembrar que a possibilidade do arrependimento e da conversão ainda existem, tendo em vista que o próprio Jesus incluiu gentios e publicanos em sua missão.

O versículo 18 trata sobre o ofício das chaves, o poder que Cristo deu à Igreja de perdoar os pecados dos pecadores que se arrependem e reter os pecados dos pecadores que não se arrependem: “em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus”. Se o pecador ouve, confessa, se arrepende e busca mudar de atitude, o anúncio do perdão divino pode ser dado. Porém, onde não houver a arguição, a confissão do pecado, o arrependimento e o desejo de reparação do mal cometido, não há anúncio do perdão.

O versículo 19 reforça essa ideia “Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus.” O que a comunidade decide em termos de assuntos disciplinares (desde que estejam de acordo com o Reino de Deus e a sua justiça) é vontade de Deus sendo realizada no testemunho da comunidade.

E Jesus conclui dizendo: “Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles” (v.20). Nas decisões da comunidade que busca o Reino de Deus e a sua justiça em primeiro lugar, Jesus está no meio deles. Onde há tentativa de diálogo, Jesus está presente. Não é a comunidade que decide no lugar de Deus, mas, sim, a decisão divina é realizada e é ecoada na voz da comunidade que, reunida em nome de Jesus, promove unidade justa. Jesus é presença real na comunidade, em todos os momentos, mesmo nos momentos onde a disciplina fraterna precisa acontecer.

Muitas vezes, esse texto é trabalhado como se ele falasse da obrigatoriedade do perdão e da reconciliação. Frases como “somos todos pecadores”, “não julgue”, “devemos sempre perdoar”… muitas vezes são usadas como justificativas para permitir que injustiças continuem acontecendo no meio da comunidade e os conflitos sejam varridos pra baixo do tapete, assim uma unidade injusta e danosa vai se perpetuando. Por isso, ignorar o pecado não está no passo a passo ensinado por Jesus. Isso seria o mesmo que edificar uma comunidade baseada na injustiça. Esse texto nos exige que usemos de Lei e de Evangelho, ao admoestar um irmão, com amor e firmeza, dizendo-lhe: “Você está em pecado”, “isso precisa mudar”. Jesus quer a edificação da comunidade onde sua unidade é baseada na justiça.

Não descartamos aqui a possibilidade de acontecer o perdão e também a reconciliação, esse é o ideal pensado por Deus. Mas, em primeiro lugar, esse texto quer orientar a comunidade a ser edificar a partir de fundamento sólido e justo, por isso fala de admoestação, de reconhecimento da culpa e de transformação. Se depois disso, o pecador confessar a sua culpa, pedir perdão e buscar a reparação de seus erros, aí, sim, podemos falar de perdão. Não existe verdadeira chance de perdão onde primeiro não houver justiça. Sendo o perdão possível, é possível (ou não) a reconciliação, sonhada por Deus.

Importante ainda destacar que não se pode confundir perdão com reconciliação. Perdão pode acontecer ainda que as pessoas envolvidas não reestabeleçam a relação que tinham antes. Que bonito quando todos esses passos acontecem: admoestação, reconhecimento, mudança de atitude, confissão de culpa e pedido de perdão por parte do ofensor, perdão por parte do ofendido, e reconciliação. Mas até mesmo Jesus sabia que nem sempre esse seria o resultado de um diálogo fraterno. Mesmo assim, independente do resultado, Jesus vem nos dizer que jamais nos abandona e que está em nosso meio mesmo onde a justiça e o amor de Deus foram ameaçados. É ele que nos fortalece na luta!

Perdão cristão combate o mal e às suas raízes, não nos deixar silenciar e acomodar frente às injustiças (ele é denúncia e anúncio), por isso luta e promove justiça (nem sempre a reconciliação é possível), e transforma o ser e a realidade (e as relações) em sua volta.

Que, com a presença de Jesus em nosso meio, possamos cumprir a sua vontade e edificar comunidades onde a unidade é baseada no amor responsável e na justiça de Deus. Amém.

Pa. Stéfani Niewöhner

  1. Fernando José Matias

São Lourenço do Sul – RS (Brasilien)

stefaniniewohner@gmail.com

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