VIVER À SOMBRA DA CRUZ

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VIVER À SOMBRA DA CRUZ

PRÉDICA PARA O 5º DOMINGO NA QUARESMA – 21.04 2021. | Texto bíblico: Hebreus 5.5-10 | Felipe Gustavo Koch Buttelli | 

Que o amor de Deus, manifesto em solidariedade e compaixão em Jesus, e a comunhão do Espírito vivificador estejam com vocês. Amém.

Como é bom e reconfortante quando encontramos pessoas que tomam atitudes em prol das outras sem segundas intenções. Pessoas que se colocam a serviço, são cuidadoras e colocam os interesses da outras diante dos seus próprios. Fonte de empatia abnegada que gera em nós a esperança na própria humanidade. Se este tipo de experiência é rara em nossos dias, nestes momentos de crise e sofrimento humano que vivemos, há, sim, plenos sinais de que a humanidade pode viver esta profunda empatia e solidariedade.

Talvez um dos exemplos que nos ajude a ver esta presença reconfortante em nossos dias seja o testemunho dado por profissionais de saúde que atendem no front de combate à Covid19. São tantos homens e mulheres que abrem mão, temporariamente, do convívio com suas famílias, que fazem jornadas exaustivas de trabalho, que se entregam a sofrer junto com seus pacientes. Choram, lamentam o luto diariamente, se alegram com as pequenas conquistas e clamam por uma sociedade mais responsável e cuidadosa, para que evitem estar naquele lugar de sofrimento, que estes e estas profissionais conhecem tão bem.

É com esta imagem de fundo que me aprofundo dos textos previstos para a pregação deste domingo. Há neles uma característica comum que estabelece diálogo entre a compreensão cristã e a lógica religiosa judaica, para a qual Jesus, inicialmente, veio. O texto de Jeremias 31. 31-34 aponta para a promessa de uma “nova aliança” que Deus fará com a humanidade, em que a Lei não precisará mais ser um fardo a ser cumprido, uma vez que o próprio Deus a inscreverá nos corações e mentes de seu Povo, de modo a universalizar o perdão e a misericórdia de Deus. No Evangelho de João 12. 20-33, alguns explicitamente caracterizados como “não-judeus” vão consultar Jesus. A estes Jesus revela a sua verdadeira natureza: anuncia a sua morte como meio necessário para que aquelas pessoas que perdem a sua vida, recebam da parte de Deus a vida verdadeira. Ali Jesus anuncia que isso não acontecerá sem que ele sinta “grande aflição”, ainda que o medo do sofrimento que há de encarar não o afaste de seu caminho ao calvário, algo necessário para que cumpra sua função “sacerdotal”.

A Carta aos Hebreus, na qual se encontra nosso texto (5.5-10), há um aprofundado debate da visão teológica dos cristãos com os preceitos judaicos. O autor de Hebreus deixa claro que Jesus é o “supremo sumo sacerdote”, que veio para substituir e encerrar a lógica sacrificial da religião judaica. Dentro do Judaísmo, sobretudo o bíblico, que apresenta a história da constituição da religião judaica com uma lógica sacrificial em torno do Templo de Jerusalém, os Sumo Sacerdotes são aqueles mediadores entre Deus e, inicialmente, a classe levita sacerdotal, que garantem ao Povo Judeu o perdão para os pecados através do sacrifício. Ao não cumprir a Lei de Deus, transmitida através de Moisés, o povo necessitava dos sacrifícios para tornar-se novamente puro diante de Deus. As consecutivas destruições do Templo de Jerusalém sempre criaram sofrimento ao povo de Israel, que não tinha mais oportunidade de oferecer seus sacrifícios e receber o perdão purificador.

Portanto, Hebreus aponta para o fato de que Jesus foi este sacerdote acima de todos sacerdotes, pois não teve pecado e se submeteu, obedientemente, ao sofrimento vicário que de uma vez por todas garantiu o perdão à humanidade, de modo que quem a ele se achega, em confiança e fé, não mais precisa oferecer sacrifícios a Deus. Cristo foi o sumo sacerdote, mediador definitivo, e o próprio sacrifício, que garantiu aquela “nova aliança”, da qual falava Jeremias: “pois eu perdoarei os seus pecados e nunca mais lembrarei das suas maldades” (34).

Por isso, Lutero, ao comentar sobre o nosso texto de Hebreus, enfatiza que é muito melhor aos nossos corações reconhecermos Jesus como sacerdote, ao invés de Senhor. Enquanto Senhor tem um caráter mandatário em relação aos súditos, sacerdote é aquele que media o encontro com Deus, que nos aproxima dele e que presta o próprio sacrifício, de modo que para nós resta apenas os benefícios de sua misericórdia e de seu amor gracioso.

Nos versículos anteriores ao nosso texto, fica bem clara a identificação profundamente solidária que este sacerdote assume, como alguém que se solidariza, que conhece e compartilha de nossos sofrimentos e da fraqueza humana. Assim consta nos versículos 15-16:

“O nosso Grande Sacerdote não é como aqueles que não são capazes de compreender as nossas fraquezas. Pelo contrário, temos um Grande Sacerdote que foi tentado do mesmo modo que nós, mas não pecou. Por isso tenhamos confiança e cheguemos perto do trono divino, onde está a graça de Deus. Ali receberemos misericórdia e encontraremos graça sempre que precisarmos de ajuda.”

Por isso, Jesus é apresentado como sacerdote da “ordem de Melquisedeque”. De acordo com a tradição judaica, Melquisedeque, o sacerdote de Abraão, não havia nascido, nem veio a morrer. Estava acima da tribo sacerdotal Araônica, dos levitas, que foram instituídos pela Lei judaica de Moisés. Jesus é um sacerdote diferente, porque sua obra mediadora acontece através da sua própria negação de si mesmo. Jesus foi profundamente empático com seu povo, chorou e clamou em voz alta, intercedendo pelos seus, e não clamando por si mesmo, ainda que soubesse que seu Pai seria capaz de livrá-lo do sofrimento e, por fim, da morte na cruz. Justamente na cruz, quando clamou: „Meu Pai, se for possível, afasta de mim este cálice; contudo, não seja como eu quero, mas sim como tu queres“, Jesus aprendeu a derradeira obediência à vontade de Deus, o que assegurou ao mundo a salvação e a si mesmo, pela misericórdia de Deus, que fosse ressuscitado e ingressasse na vida da Glória eterna de Deus.

Assim, eu retorno à imagem dos e das profissionais de saúde, que nos dão testemunho de semelhante conduta: a verdadeira solidariedade e o amor que Deus nos ensina através de Jesus Cristo levam-nos justamente a viver, com Cristo, em obediência, passando juntos pelo sofrimento. Na verdade, sofrendo junto em duplo sofrimento: o seu próprio, como alguém que “chora e clama a Deus”, mas também o sofrimento das outras pessoas, estando ao lado, acompanhando no momento de maior abandonando, estendendo a mão cuidadosa na hora da morte.

De fato, a fé cristã não nos oferece uma promessa imediata de passarmos pela dor, de sempre a superarmos com fé que cura e liberta. Deus está, sim, ao lado de quem morre – e são tantas mortes e vidas perdidas neste tempo de pandemia, que só podemos entender que neste mundo, Jesus é novamente o “sumo sacerdote”, que se encontra intubado, sem conseguir respirar, sem leito, desfalecendo em cadeiras nas filas das enfermarias. A mediação, o verdadeiro sacrifício de Cristo, revivido em todo sofrimento humano neste mundo, está em abraçar profundamente e até o fim a nossa dor e nosso sofrimento.

Jesus é o Deus derrotado neste mundo, Deus com e para os derrotados e as derrotadas. Ele perde mesmo, sucumbe diante das injustiças, assim como sucumbiu no julgamento no Sinédrio e diante de Pilatos. Sua vitória na ressurreição é testemunhada como esperança de futuro. Por enquanto, a vida humana é uma grande quaresma. Caminhamos à sombra da cruz, cruz que simboliza a empatia profunda e salvadora que Deus manifesta em Jesus no “aprendizado obediente do sofrimento”.

A fé cristã é desvirtuada pela teologia da prosperidade. A verdadeira teologia cristã, como diz Lutero, rejeita a teologia da glória, de que a vida cristã é vida dos vitoriosos, é a vida da prosperidade, da bênção material, de um Deus que retribui. Esta teologia, que rejeita a quaresma, que evita falar da cruz, é bem afeita aos valores contemporâneos que reinam no meio de muitas igrejas: egoísmo, meritocracia, lógica do sucesso acima de tudo. Este falso testemunho cristão, que pula para o Domingo de Páscoa sem entender a Sexta-Feira da Paixão, desfigura a face mais gloriosa de Cristo: da humildade de quem abre mão, em sua vida, de instituir a si mesmo como sumo sacerdote. Ele abre mão de tudo, da própria vida, como lembra João: “Quem ama a sua vida não terá a vida verdadeira; mas quem não se apega à sua vida, neste mundo, ganhará para sempre a vida verdadeira.” (12.25)

Amadas irmãs e irmãos: quaresma é tempo de devolver Cristo à sua função sacerdotal, abnegada, que dá a vida, que se identifica profundamente com a humanidade e que conhece o nosso sofrimento, o meu sofrimento, o teu sofrimento, que está ali conosco, quando justamente estamos a desfalecer, pedimos livramento, mas nos submetemos, obedientemente, à vontade de Deus. Quaresma é tempo de pregar e viver o convite que nos faz o Deus da cruz.

Portanto, é tempo também de enfatizarmos essa dimensão da vida cristã: fraterna, sorória, apaixonada (tempo da paixão?), abnegada, em imitação àquilo que o próprio Cristo fez. Isto é o que significa viver em obediência a Cristo. Não mais seguir cegamente àquela Lei mosaica dada aos judeus, não apenas obedecer a ordens de um “Senhor” que manda em nós. Obediência é esta entrega, este abrir mão de si, esta empatia profunda que Jesus, como verdadeiro mediador e sacerdote, nos ensina. Abrir mão da vida para nós e recebermos a Vida por nós. Assim como os e as profissionais da saúde têm sofrido imensamente nesta quarentena para estar ao lado de quem mais sofre e precisa durante esta pandemia. Obediência é saber viver confiantemente juntos e juntas na dor e na derradeira experiência do abandono e do medo da morte, cientes de que é ali que Jesus nos encontra. O verdadeiro Evangelho de Cristo é esta certeza de que é ali que Deus está no mundo e conosco – neste tempo de dor e sofrimento, à sombra da cruz, com um olhar de esperança para a ressurreição e para a Páscoa da humanidade.

“Lâmpada para meus pés é a Tua Palavra, Senhor, e luz para o meu caminho. Amém.”

 

  1. Dr. Felipe Gustavo Koch Butelli

Goiânia – Goiás, Brasilien

felipebutelli@yahoo.com.br

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