
DOMINGO DE PENTECOSTES
Texto bíblico: João 15.26-27; 16.22-27 | 23 de maio de2021 | Hans Alfred Trein |
Querida Comunidade,
Deus dos cristãos é muito diferente de outros deuses. É especial entre as religiões do mundo, não tem outro nem parecido. Primeiro, porque não fica lá longe, imutável. Segundo, porque vem participar de nossa história. Terceiro, porque ouviu o clamor dos escravos no Egito e desceu para libertá-los. Quarto, porque escolheu como seu povo fermento aqueles que estão na margem da história. Quinto, porque não lhes prometeu ausência de sofrimento, mas prometeu estar junto o tempo todo. Sexto, porque veio a nós em Jesus Cristo, para estar presente em cada tipo de experiência humana, inclusive a tortura e morte violenta. Sétimo, porque continua entre nós através do Espírito Santo. Este é o nosso Deus, acessível, mas indisponível. Segundo o testemunho bíblico, está em todos os lugares ao mesmo tempo, especialmente próximo de pobres e oprimidos, é Todo-Poderoso mas, muito antes, Todo-Amoroso, Onisciente mas, antes, Todo-compreensivo.
Em Jesus, Deus esteve presente na história. Com Jesus, fez jus ao próprio nome que Deus atribuiu a si mesmo, quando Moisés quis saber em nome de quem estava sendo enviado a Faraó pedir a soltura dos escravos hebreus. Deus disse: “Eu sou o que está aí e estarei aí” (Ex 3.14). Jesus é a encarnação do nome de Deus. É isso que significam as várias passagens de João 6, em que Jesus diz: “Eu sou…”. Jesus experimentou todo potencial de perseguição da fonte difusora do ódio, onde se alinharam autoridades civis, jurídicas e religiosas, inclusive os piedosos fariseus, até a morte na cruz. O mundo não apenas julgou mal um ser humano nobre (1.10), há dois mil anos, mas descartou a revelação e continua fechando-se a ela. A ressurreição de Jesus foi um ato de justiça de Deus diante de seus detratores e assassinos. É liberdade plena do julgamento e do poder do mundo. Ele não pertence mais ao mundo; tornou-se indisponível para o mundo.
Jesus viveu entre nós, fez o bem às pessoas doentes, famintas e atribuladas, enfrentou o poder político e religioso que conduz à morte, enfrentou a própria morte, venceu a morte, ressuscitou, subiu ao céu… mas não abandonou os seus. Enviou o paracleto, o Espírito Santo. O Espírito Santo é a continuidade de Jesus na terra. Trabalha para salvar a criação do pecado, da cegueira, da confusão por ideologias mentirosas e do poder do mammon. Nas palavras do estudioso teólogo, Rudolf Bultmann:
Ele só pode continuar sendo o Revelador, como Aquele que constantemente quebra o que está dado, destrói a certeza; que irrompe do além e que chama para dentro do futuro. Só assim, o crente será protegido de voltar-se a si mesmo e ali permanecer, ao invés de deixar-se desamarrar de si mesmo e remeter-se constantemente ao futuro. O sentido da revelação é libertar o crente; a segurança que ela dá não é a consistência do presente – na verdade sempre já passado – mas, sim, a eternidade do futuro. Por isso, também o discípulo das gerações posteriores nunca poderá segurar a revelação que o encontrou, seja a experiência da alma, seja o reconhecimento ou a cultura cristã. Também para estes Jesus é aquele que está sempre se despedindo; e se ele não conhece a λύπη (luto, tristeza) do abandono, também não experimentará a χαρά (alegria, júbilo) da conexão.[1]
Pois é, nós nos encontramos nesse tempo de atuação do Espírito Santo, cujo início comemoramos hoje. Somos convocados a nos deixarmos guiar pelo Espírito Santo para continuar a obra de Jesus. Pedimos pelo Espírito Verdade, que venha habitar em nós e nos livre de ideologias mentirosas e pervertedoras da Palavra de Deus. Grupos pentecostais e neopentecostais, avessos à ciência e ao conhecimento querem apossar-se do Espírito Santo, para manipulá-lo a bel prazer e fazê-lo servir aos seus interesses e propósitos de poder. Como não podem mais torturar o Jesus físico, procuram torturar o Espírito Santo. Nenhum governo secular pode dizer que é exercido em nome do Espírito Santo. Estão fazendo vítimas em muitos lugares. Mas, não vão prevalecer, porque Deus não vai deixar! Deus, presente no Espirito Santo, não é disponível do jeito que essa gente pensa e dissemina. Eles até podem travestir suas pregações ideológicas com fórmulas bíblicas, adorná-las com símbolos religiosos, enganar as pessoas vulneráveis com indulgências requentadas. Mas, ao final, vão perder para o conhecimento da verdade que liberta. Pelo número de seguidores, parece que estão vencendo, mas a sua ruína será fragorosa!
O Espírito Santo não dispensa o estudo, a avaliação crítica, o raciocínio. Isso significa que está apodrecendo de maduro o tempo, em que temos que deixar o estático “ser cristãos” para um dinâmico “tornarmo-nos cristãos”. Igrejas cada vez mais vazias são um sinal dos tempos: o rosto do cristianismo não pode ficar preso aos templos. Temos de voltar a descobrir-nos como sendo “os do caminho”[2] fazer uma viagem ao âmago do Evangelho. Jesus está à porta e bate. Talvez esteja batendo do lado de dentro das igrejas e queira sair! Ou talvez até o crucificado e ressurreto “Jesus da gente” já tenha saído para as periferias do mundo e a gente nem notou, pois Ele pode atravessar portas fechadas!
No estudo da Bíblia é necessário distinguir entre o que foi a cultura oriental de 2000 anos atrás e o que foi dentro dela a Palavra de Deus. Não é possível argumentar com a Bíblia, para impor normas culturais de 2000 anos atrás. As culturas mudaram. As pessoas evoluíram. A economia mudou. Os papéis sociais mudaram. Os regimes políticos mudaram. A noção de ser humano mudou. A Declaração dos Direitos Humanos tem menos de cem anos de idade! (1948). Imaginem os avanços da medicina! A área da sexualidade humana passou por verdadeiras revoluções de conhecimento. Imaginem o que se tinha de tecnologia nos tempos bíblicos e o que se tem hoje! Imaginem só as mudanças que houve do tempo de nossos pais para nós. Então, quando vamos pra Bíblia, buscar orientação para hoje, temos que considerar todas essas mudanças com o conhecimento novo que temos hoje. Com esse conhecimento é que vamos identificar a Palavra de Deus.
Vamos pensar ainda as mudanças que já vivemos em nosso tempo de vida: teve aquelas que foram para melhorar a nossa vida, teve outras que a pioraram. A evolução tecnológica serve para facilitar e melhorar a nossa vida, mas também traz consequências nefastas: maior consumo, mais lixo, inundação de plástico, mais desigualdade social, o planeta terra em perigo… Com todas essas coisas a cultura bíblica não precisou se preocupar. Você não vai encontrar na Bíblia uma orientação direta sobre como lidar com esses desafios; mas, vai encontrar orientações indiretas, resultado de intenso estudo com as disciplinas universitárias que hoje temos à nossa disposição.
A economia se globalizou, o dinheiro tem trânsito livre, mas as políticas ainda são nacionais e não conseguem mais dar um rumo decente ao produto do trabalho social. A negação da política está resultando na política de negação da vida; a morte da política resulta em política da morte: a que não admite a diversidade, a que é estruturalmente racista, a que faz a apologia da ditadura militar e da tortura, a que prega a desaparição dos inimigos, a que renega a democracia e suas instituições, a que atenta contra os direitos humanos, a que prega a violência como forma de enfrentar os conflitos, a que dá livre curso a um vírus, para que ele vá eliminando os mais fracos, aquela, cuja polícia mata preferencialmente negros e favelados. Do outro lado está a democracia: importa resgatar a política, como atividade em favor da vida, dos interesses públicos, de políticas públicas integrativas dos mais pobres, da convivência de diferentes posições e pontos de vista, de uma sociedade diversa na busca por uma vida com justiça e paz. Vivemos tempos de crise, e crise tem um duplo sentido: fim do que está caindo de maduro, incluindo sistemas e estruturas, e a chance de algo novo. Precisamos de conhecimento e de entendimento para a crise civilizatória que vivemos no mundo e não só no Brasil.
No Evangelho de João, o mundo é caracterizado como oposto a Deus. Mas, mundo aqui não é igual à boa criação de Deus. Mundo refere-se àquilo que os seres humanos com suas leis e ideologias, com suas confusões entre bem e mal, com suas estruturas produtoras de injustiça e morte dela fizeram. Nós cristãos estamos neste mundo, mas não somos deste mundo. No palco deste mundo é que se desenrola a história salvífica, “pois Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu próprio filho, para que todo aquele que nEle cresse, tivesse a vida eterna”. Nele passamos por aflições, mas, Jesus, nos recomenda bom ânimo, pois Ele venceu o mundo. Quando disse a Pilatos que seu reino não é deste mundo, não deixava de mencionar uma grandeza política com a palavra reino. Mas, dizia que não viera para assumir o poder em Jerusalém, restaurar o reino de Davi, como tantos esperavam. Seu propósito não era penúltimo, mas último, escatológico! Todavia não deixa de ser também político no sentido de constituir a ordem da justiça e do amor que promove a vida plena, precisamente neste mundo em desordem que resulta em morte e perdição, mas ao mesmo tempo alvo do amor de Deus. Cristãos empenham-se em melhorar o penúltimo, sem perder de vista o último!
Por fim, não dá para não falar da pandemia. O mundo está doente, com febre. A falta de humanidade resultou em carência de imunidade. Entramos numa espécie de darwinismo social: a pandemia vai matar preferencialmente os mais vulneráveis e isso vai ser bom para os que ficam. Só em um país de longa formação escravista (340 anos!) e de tamanha desigualdade econômica e social, um governo com apoio de religiosos e militares pode decretar, como política de Estado não fazer nada, esperar, que a população se contamine, para os mais fortes alcançarem a imunidade de rebanho, o tal efeito manada, e que os mais fracos adoeçam e morram. Na opinião dessa gente, o povão da senzala só tem valor instrumental, para a riqueza que geram e nem um direito a mais. E, se o vírus não pegou, a chacina pela polícia civil do RJ, autorizada pelo governador, e elogiada pela presidência da República, com 28 mortos da favela do Jacarezinho, realiza.
O vírus conseguiu mover algo que nenhuma pregação conseguiu: os ideólogos do estado mínimo e do mercado comandando tudo encolheram-se covardemente. O ídolo mercado, pelo menos temporariamente, deixou de comandar o espetáculo deprimente da destruição planetária, virou uma estatueta desacreditada e toda carcomida de cupim. A meritocracia foi substituída por um discurso de solidariedade. Moradores de rua e favelados, sempre suspeitos e discriminados, passaram a ser chamados de vulneráveis, por causa do seu potencial de disseminação do vírus. Algumas corporações aproveitaram para polir sua imagem, fazendo caridade inversamente proporcional às milionárias quantias sonegadas. De repente, setores influentes da sociedade exigiam a ação do estado, sem pestanejar concordavam que se endividasse, elogiavam Bolsa Família e SUS… que antes queriam diminuir ou eliminar. Então, esse é o mundo que precisa ser convencido do seu pecado que conduz à morte. Só se pode esperar que tenhamos aprendido a nos tornarmos mais humanos, humildes e cooperativos através dessa pandemia!
Resumindo, estamos nos sentindo quase como aquele vale de ossos secos, descrito na visão de Ezequiel. Mas, Jesus, que veio trazer a luz, a justiça e a paz ao mundo, porque Deus amou o mundo, nos encoraja: vai passar, o príncipe deste mundo já está julgado! A crise nos motiva a buscar conhecimento, usar nossa razão para entender e discernir entre o que é verdade e o que é mentira, tanto naqueles que estão à toda hora usando em vão o nome de Jesus, como entre aqueles outros, para os quais a religião só é mais um meio de poder secular. Vamos imitar Jesus em sua postura solidária e de compaixão com os excluídos da sociedade de hoje. É assim que o Espírito Santo guia a sua igreja e as pessoas de boa vontade.
Estamos a caminho. Vamos nos abrir ao Espírito Santo, para que venha habitar em nós e nos empurre na direção da Verdade que nos libertará e nos console em nossas angústias.
Amém.
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Ps. Me. Hans Alfred Trein
São Leopoldo – Rio Grande do Sul, Brasilien
hansatrein@gmail.com
[1] BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. Kritisch Exegetischer Kommentar über das Neue Testament. Göttingen, Vandenhoeck¨Ruprecht, 1968. P. 431/2. (tradução própria).
[2] At 9.2; 16.17; 18.26; 22.4