
Lucas 3. 7-18
A DEMANDA ÉTICA DO ADVENTO | PRÉDICA PARA O 3º DO,MINGO DE ADVENTO | 12 de dezembro de 2021 | Texto bíblico: Lucas3. 7-18 | Felipe Gustavo Koch Butelli |
Que a graça do nosso amigo e irmão Jesus, o amor de Deus criador e mantenedor da vida e a comunhão do Espírito de sabedoria e coragem estejam com você. Amém
Caras irmãs e caros irmãos,
Advento é tempo precioso em nossas vidas. É tempo de enfeitar a casa, tempo de ouvir hinos de Natal que lembram da nossa infância, da espiritualidade vivida em família. Tempo de pensar sobre nossas vidas e gestar, de preparar um novo ano, que simbolizamos na tradição cristã com a chegada do infante Jesus, revelação de Deus em nossas vidas. É tempo de contemplação, de silêncio, de procurar se reconciliar para os reencontros nas festas de família. Tempo em que avaliamos o ano que passou e que pensamos no que queremos para nossa vida no ano que segue, oportunidade de deixar para trás aquilo do que nos arrependemos e de encontrar energia e força para realizarmos aquilo que mais desejamos para nossas vidas.
É certo que neste tempo pandêmico, e precisamos lembrar que ainda vigora uma perigosa pandemia que ceifa muitas vidas, tem sido difícil planejarmos muitas coisas. Muitas pessoas ainda permanecem em estado vigilante e possivelmente não poderão reencontrar pessoas queridas. Por isso, vivemos Advento novamente, pelo segundo ano, em condições diferentes, que tendem a projetar nossa experiência de Advento para dentro das nossas casas, para nossa individualidade, senão para nossa solidão. Sobretudo se considerarmos quantas pessoas perderam seus entes queridos. Nossa sociedade como um todo vive ainda em um luto pelo impacto devastador desta pandemia em nossas vidas. Digamos assim, estamos vivendo um Natal mais solitário do que costumamos nos recordar.
Mas para além da pandemia, outros fatores culturais têm continuamente operado para a construção de uma experiência de Advento e Natal muito individualizada. É fato que vivemos em um dos períodos da história em que há maior aprofundamento numa cultura individualista, que hoje se radicaliza, também pelas características sociais e econômicas do nosso tempo presente, em um capitalismo extremamente consumista, hedonista, individualizante que constitui uma sociedade profundamente desigual e injusta. Neste contexto, a tendência individualizante do Advento – na minha casa e com a minha família – se sedimenta na nossa cultura. É muito mais um Natal solitário do que solidário, por dizer assim. Nossas preocupações voltam-se para dentro, enquanto nos distanciamos de um olhar diaconal e solidário. E nem preciso aqui enfatizar que vivemos tempo de carestia: fome, miséria, desemprego, crise econômica e crescente desigualdade. Esta realidade está aí para nós todas e todos vermos. Literalmente bate à nossa porta. Somos cultural e socialmente condicionados – mas optamos por reafirmar esta cultura – a virar o rosto, olhar para o lado e fingir que nada está acontecendo. Acendemos as velas de Advento em nossa casa, enfeitamos nosso pinheiro, pensamos na nossa ceia e esquecemos que em muitos lares e muitas famílias essa experiência será vivida com sofrimento, fome e muitas dificuldades.
Daí me vem a pergunta: de que serve este Advento? Qual a serventia do anúncio do nascimento de Deus no mundo? Será que se presta apenas a individualmente renovar nossas energias, permitir o reinício de um ciclo em que continuaremos vivendo como uma sociedade brutalmente violenta, excludente e desigual? O texto do evangelho de Lucas 3. 7-18 nos chama seriamente a problematizarmos essa realidade. Que Messias é esse que vem, anunciado por João Batista? Como João nos convida a nos prepararmos para sua chegada? João Batista nos fala hoje duras palavras. Conclama a uma decisão ética e nos lembra que o Advento é, sim, um tempo de preparação, mas não apenas uma preparação voltada à nossa individualidade e nossa interioridade, mas sobretudo uma preparação ética e moral para vivermos de forma justa e igualitária externamente, como comunidade e sociedade.
João Batista era um pregador peregrino, assim como seu primo Jesus. Sua vida dava testemunho constante de crítica ao sistema religioso, cultural e social de seu tempo. Ele chamava as pessoas ao arrependimento e as batizava com água, como sinal da purificação do mal e das injustiças que as pessoas cometiam no seu cotidiano. Na sua conduta pessoal, na sua atividade profissional, na sua prática religiosa. E João demonstra plena consciência de que ele mesmo não era o Messias, mas preparava o caminho para aquele que viria, o Filho de Deus. E nos lembra: o juízo que este Messias trará será muito mais severo. Será aquele que vai separar o joio da palha e jogará no fogo aqueles galhos que não produzem bons frutos. No seu discurso às multidões que o procuravam, João aponta para os múltiplos aspectos da vida social nos quais precisamos de arrependimento e conversão, como forma de nos prepararmos para a vinda do Senhor.
O primeiro é o religioso. João lembra que ninguém possui a prerrogativa de se achar melhor do que os outros diante de Deus. Ninguém pode se sentir privilegiado ou beneficiado simplesmente por pertencer a um grupo religioso, como é o caso dos Judeus, que julgavam que por serem filhos de Abraão não necessitavam se converter e se deixar batizar. Certamente um claro lembrete para nós de que não há grupo religioso melhor ou mais correto que os outros. No fim das contas, o que importa é a maneira como nos comportamos eticamente que mostra se somos filhas e filhos de Deus. Uma forte crítica aos fundamentalistas religiosos de nosso tempo, que se julgam superiores, perseguem e violentam com intolerância quem professa outra fé. Que querem impor sua prática religiosa e seu código de comportamento sobre os outros, até mesmo ocupando o poder e usando do Estado como forma de se impor na sociedade. Deus pode suscitar “filhos de Abraão” até das pedras. Não podemos saber de onde vem a justiça, boa e agradável a Deus. Advento é tempo de lembrar que não basta ser igreja fechada em si ou viver sua fé entre as quatro paredes. Precisamos transformar o mundo, a partir da profunda transformação ética em nós mesmas, nós mesmos.
O segundo aspecto é claramente um chamado à justiça social e econômica. Quem tiver duas túnicas, reparta. Quem tiver comida, reparta. Que lembrete importante para nós. Como podemos viver advento e natal enquanto tantas pessoas passam fome. Temos sido comunidade solidária? Temos praticado a verdadeira diaconia transformadora da realidade social e econômica em nosso contexto de vida? João também responde aos questionamentos de um cobrador de impostos e de um soldado. E sua fala é uma denúncia às práticas corruptas de quem ocupava posição de poder, seja econômico seja militar. Em um tempo em que os pobres viviam demasiadamente explorados por um império invasor que proporcionava a muitas pessoas enriquecerem através da corrupção. Poderíamos dizer que ele estava pensando também em nossa realidade hoje. Na qual precisamos nos lembrar que a corrupção não acontece apenas nos palácios e nas casas legislativas, mas é um mal sedimentado em todas as nossas relações. Devemos ser justos, éticos e praticar o senso solidário da igualdade em todos âmbitos da nossa vida. Das funções aparentemente mais insignificantes até os grandes cargos e postos de poder. Ledo engano pensarmos que a corrupção é “privilégio” de alguns políticos ou de alguns partidos. Corrupção é mal endêmico e a mudança cultural e social deve começar ali mesmo onde nós estamos.
Por fim, o texto nos indica que a mais grave crítica de João Batista não foi religiosa nem sobre as relações sociais e econômicas. Sua maior ofensa se deu quando levantou sua voz profética e denunciou a imoralidade de seu governante. Esta foi tão grave que custou-lhe a vida. Herodes acabou por mandar prendê-lo e, posteriormente, matá-lo, o decapitando e servindo sua cabeça na corte a sua esposa. Na verdade, hoje vivemos em um contexto semelhantemente ameaçador. Censura, ameaças e violência contra quem se ergue para denunciar as imoralidades e injustiças dos governantes. O clima social e político em nosso país é tão radicalizado e tão polarizado que a igreja tem, de modo geral, covardemente sucumbido em sua tarefa profética. É certamente mais cômodo conclamar à reconciliação. Mas como reconciliar uma sociedade tão injusta e tão desigual. Tempo de Advento, nos lembra João Batista, é, sim, tempo de denunciar os desvios morais e éticos dos nossos governantes. Sejam eles quem forem. Estejam em nosso espectro ideológico ou não. Sejam do nosso partido ou não. Igreja que vive consequentemente o significado do advento e do natal é igreja corajosa, que denuncia profeticamente a violência, a censura, a perseguição política, a imoralidade na vida familiar e pública de seus representantes, a corrupção. Talvez o peso desta denuncia seja a morte, a decapitação, a prisão, a difamação pública, a perseguição, a perda do emprego. Foi assim com João Batista, aquele que preparou o caminho para a revelação de Deus, certamente deve ser assim conosco enquanto igreja, corpo de Cristo neste mundo.
E nesta tarefa profética e diaconal à qual nos chama João, somos abençoadas e abençoados por uma promessa. Aquele que vem não batizará apenas com água, mas com espírito e fogo. E aqui, em verdade, reside o nosso alívio. Porque nós, enquanto membros da igreja de Jesus, somos batizados e batizadas em Cristo. Na água que purifica, que afoga o velho Adão que existe em nós, mas também no Espírito Santo, aquele que acende sobre nossas cabeças as línguas de fogo. Nós somos empoderadas e empoderados pelo próprio Espírito de Deus a realizarmos esta tarefa profética. É Deus, em sua bondade, que acende esta chama em nós. Chama que nos aquece e nos incendeia para que sejamos estas pessoas arrependidas, convertidas, renovadas, capazes de viver de acordo com a vocação ética do Evangelho. É o Espírito de Deus que nos capacita a vivermos vida nova na nossa espiritualidade, na nossa prática religiosa, nas nossas relações sociais com irmãs e irmãos que passam fome e vivem nas margens da exclusão. É o Espírito auxiliador que nos projeta para o mundo, para denunciarmos a injustiça, a corrupção, a desigualdade. É o Espírito de Deus que nos capacita e nos encoraja a erguermos nossa voz e denunciarmos aqueles que estão no poder e que imoralmente e injustamente conduzem nossa sociedade.
Que nós possamos neste Advento e Natal sair da nossa “bolha” de individualismo e indiferença, e que possamos corajosamente adentrar a nossa vida comunitária, social, o espaço social e político, vivendo como pessoas renovadas e transformadas, igreja corajosa, profética e diaconal, capaz de contribuir para a edificação de um mundo mais justo, mais igualitário, mais solidário. Que possamos ouvir em nossas vidas a demanda ética que este tempo de advento nos apresenta.
“Lâmpada para meus pés é a tua Palavra, Senhor, e luz para o meu caminho”. Amém
P. Dr. Felipe Gustavo Koch Butelli
Goiânia – Goiás (Brasilien)