
Marcos 10.2-12
PRÉDICA PARA O 20º DOMINGO APÓS PENTECOSTES | 6 DE OUTUBRO DE 2024 | Marcos 10.2-12 | Harald Malschitzky |
Irmãs e irmãos em Cristo.
Meu avô faleceu um mês antes de eles completarem 60 anos de casados. O lamento da minha vó que mais me marcou foi “Nós gostaríamos tanto de viver juntos mais alguns anos”. Eu tive o privilégio de conviver muito com esses avós. Algumas semanas das férias escolares eram com eles; por isso também sei que a vida deles nem sempre foi um mar de rosas: Pequenos agricultores, trabalhando em uma terra dobrada na serra catarinense, avô que perdera um olho picando lenha, ganhando e perdendo com as condições climáticas… À noite, reunidos em torno do rádio que mais chiava do que transmitia qualquer coisa, descascávamos maçãs, peras, pêssegos para transformar em geleias ou frutas secas. O período de Natal era tempo de encontro de filhas/os e netas/os – os de longe todos eram acomodados na grande casa. Sou um remanescente feliz da netarada!
Às vezes preciso me beliscar para entender que neste mês de setembro Regina e eu completamos sessenta anos de casados! Temos nossos filhos e “agregados”, temos um lindo bando de netas/o e temos bisnetos/a. Estão espalhados por aí, mas sempre que possível a gente se encontra, o que é uma festa. Alguém poderá se perguntar se nunca tivemos problemas, broncas, crises…Tivemos de tudo, também matrimônios desfeitos na família. E em sessenta anos de pastorado – como em outras profissões – a gente coleciona também dissabores, decepções, crises vocacionais… E a gente sabe que muitas famílias só enxergam uma saída: a separação, que também não escapa de novas crises!
A visão bíblica é que homem e mulher foram feitos para conviver, partilhar, ter seu núcleo familiar. Não esqueçamos que a própria Bíblia relata de modelos distintos de vida familiar e também não se escondem crises e mazelas, mas em princípio ela traça uma imagem muito positiva do matrimônio/família apesar de serem, muitas vezes, modelos diferentes. Na família existem papeis diferentes, mas todos convergem para o bem comum. Penso que não é exagero dizer que, embora tenha falhas e problemas inerentes, não há forma de convivência e solidariedade que supere a da família. A imagem da família como “porto seguro”, também para aqueles que foram navegar por outros mares e se deram mal, predomina. Existem muitas histórias de famílias que não são apenas esteio para pequeno grupo, mas que continua sendo esteio para todo um segmento da sociedade. Sim, temos famílias e mais famílias com a vida enrolada e que já não são lugar de aconchego “porto seguro”, mas campo de guerra que resulta até em mortes físicas. Também esse cenário é conhecido na Bíblia. O risco cresce quando a família é usada para fins de poder político, nos velhos tempos e em tempos de hoje, por vezes com uma pintura de pura piedade. Por tudo isso não faltaram e não faltam as ideias de deixar as relações acontecerem na medida da necessidade ou vontade, numa espécie de “vale tudo” sem maiores laços ou compromissos. Experiências desse modelo, feitas em muitos lugares, não vingaram.
O matrimônio, o núcleo familiar é espaço privilegiado de vida em comunhão e solidariedade. É claro que também aqui se exigem renúncias, se exige compreensão recíproca, se necessita de perdão, muito perdão! Mas nesse espaço continuamente aparecem surpresas com as quais nem se sonhava.
No entanto há casos – muitos casos – onde a convivência, a partilha, a solidariedade, o amor no sentido mais profundo definharam. Lutero fala em Ehezerüttung, em algo que se desfaz como um tecido velho ou uma casa em ruínas, quando por razões mil, se atingiu o “ponto sem retorno”. Aí, contrariando a boa ordem da criação, o melhor que se pode fazer é separar-se. É bom lembrar logo que desfazer a boa ordem também causa sofrimento, às vezes muito sofrimento e tantas vezes os cacos do matrimônio/família permanecem espalhados para o resto da vida. Jesus, em nosso texto, classifica a carta de divórcio, embora legal, um adultério. O que ele muda é que, numa mentalidade machista, também à mulher é permitido pedir o divórcio.
Comunidades cristãs e principalmente a igreja institucionalizada tiveram enormes dificuldades em lidar com pessoas divorciadas, por vezes elas eram tidas como fracassadas ou de uma categoria “inferior”. A discussão a partir do amor de Deus por todos os seres humanos começamos a ver também divorciados/separados com outro olhos e desenvolvemos programas e espaços para essas pessoas retomarem suas vidas. A visão de Jesus de que carta de divórcio não é coisa boa, continua. Mas ele mesmo sofreu e morreu também por essas pessoas. A igreja, a comunidade, não precisa aplaudir separações/divórcios, mas cabe a ela caminhar com as pessoas.
Parafraseando um autor cujo nome esqueci, eu diria que prefiro um mundo com matrimônios/famílias com problemas em lugar de um mundo sem família/matrimônio. Agradeçamos a Deus por nos ter criado um para o outro, peçamos perdão por todas as vezes que nós estragamos a boa ordem por ele estabelecida. Amém
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Harald Malschitzky, P.em.
São Leopoldo – Rio Grande do Sul