Atos 16.16-34

PRÉDICA PARA O 7º DOMINGO DA PÁSCOA | 29 de maio de 2022 | Texto: Atos 16.16-34 | Vitor Hugo Schell |

Introdução

Uma equipe em viagem missionária – Paulo, Silas, Timóteo e provavelmente Lucas. O grupo é impedido de anunciar o Evangelho por duas vezes – portas fechadas ao Evangelho. O motivo de tal impedimento não é apresentado no relato. Interpretam que o próprio Espírito Santo (16.6), o Espírito de Jesus (16.7) os estava impedindo, que Deus tinha outros planos. Paulo tem, então, uma visão a noite. Nela um homem macedônio rogava pedindo ajuda. O grupo interpreta a visão de Paulo como um chamado a se dirigirem às regiões mais à oeste do mundo conhecido da época. Temos no texto uma visão (certamente como orientação vinda da parte de Deus) e uma interpretação comunitária quanto a essa visão. Não um homem macedônio é encontrado, em primeiro lugar, em Filipos, da Macedônia, mas uma mulher vinda da Ásia Menor, da cidade de Tiatira, uma empreendedora, comerciante de tecido de púrpura. Lídia é encontrada pelo grupo em um local de oração junto ao rio.

Desta vez o contato com as pessoas não acontece na Sinagoga, para onde Paulo geralmente se dirigia de forma estratégica num primeiro momento, mas em um local de oração na beira do rio. A estratégia muda! Não são os homens da Sinagoga os interlocutores de Paulo, mas mulheres que se reúnem no sábado naquele local junto ao rio. O texto indicado para o domingo “Exaudi” (designação latina do domingo) nos traz o relato de uma sequência de eventos que deflagram clamores escondidos ou explícitos e a maneira como o Senhor ouve e age diante. Convido a abrirmos o texto de Atos 16.16-34.

Leitura do texto bíblico

“Escravos da religião” foi um termo descoberto pelo pesquisador Vítor Hugo Monteiro Franco, da Universidade Federal Fluminense, em registros de batismo de nascidos no séc. XIX numa propriedade rural dos beneditinos na baixada fluminense. Descobriu que Jesuítas, Beneditinos e Carmelitas, e em menor escala também os Franciscanos, tinham esses “escravos da religião”. Em 1871 esses escravos da religião foram libertos, ou seja, 17 anos antes de 1888, ano da oficialização da abolição da escravatura no Brasil.

Religião misturada com exploração. Este assunto não é novo! Venda de indulgências, venda de salvação, venda de curas milagrosas, venda de bênçãos. Exploração, obscurantismo, charlatanismo. Produtos, recursos que prometem liberdade e paz. No próprio templo em Jerusalém Jesus expulsa vendilhões que transformaram a casa de oração em covil de ladrões. No esquema da grande babilônia do Apocalipse, para todas as épocas figura do mundo sem Deus, além de todo tipo de mercadoria de ouro, linho finíssimo, púrpura de seda e carros, vendem-se também almas humanas (cf. Ap. 18.13).

Uma “escrava da religião” é liberta

No relato bíblico lido, o espírito que possui, que aprisiona a mulher adivinha, e que incomoda a Paulo e seus companheiros, é chamado pelo autor de Atos de Python, nome da serpente protetora do Oráculo em Delfos, importante centro religioso da Antiguidade. A serpente é conhecida muito bem no relato bíblico, desde Gênesis. Pitonisas eram as mulheres que, na época, agiam por charlatanismo ou por inspiração real de poderes obscuros. A mulher do texto bíblico não é chamada, ela mesma, de Python. O autor de Atos está deixando claro, porém, que é com o diabo que Paulo e seus companheiros estão lidando e que o demônio e seus servos – em nome de costumes tradicionais e de lucro financeiro – associam-se, na verdade, na escravidão e exploração daquela mulher.

O que a mulher anuncia, ironicamente, é verdade. Paulo e seus companheiros são, de fato, servos do Deus altíssimo e proclamam, de fato, o caminho da salvação. Existe a proclamação de uma verdade que tange a confissão sobre a identidade dos servos de Deus. O que não existe por parte da mulher, porém, é o envolvimento pessoal com a identidade do próprio Deus Altíssimo que se revelou em Jesus Cristo, anunciado por Paulo e seus companheiros. Dar voz, dar púlpito à mulher e identificá-la com a mensagem de Paulo, certamente não traria clareza do Evangelho de Jesus Cristo. Uma vez conhecida em Filipos, com sua mensagem ligada a poderes ocultos, como fonte de lucro de seus senhores, a associação da mulher à mensagem de Paulo traria antes confusão e descaracterização da mensagem do Evangelho. Fica claro, assim como em outros textos bíblicos, que saber quem é Jesus, que crer que existe um Deus, ainda não significa confessá-lo e render-se a ele por fé (v.17).

A mercantilização e a instrumentalização da fé das pessoas para fins escusos – ainda que misturada com verdades e benefícios – descaracteriza o anúncio do verdadeiro evangelho e confunde, afasta, espalha, escraviza. É como uma vacina – deixa os ouvintes vacinados contra a mensagem do Evangelho. Facilmente os ouvintes poderiam concluir: “ – Se o que esses homens nos trazem está em acordo e não é nada mais do que o que essa mulher já sempre nos apresenta aqui em nosso lugar de oração à beira do rio, então não temos nada de novo, não existe libertação, mas perpetuação de exploração e escravidão!”

Paulo e seus companheiros não estão vendendo nada, não estão mercadejando com a mensagem do Evangelho (compare 2Co 2.17). Não é de hoje que a religiosidade, que propostas de espiritualidade se tornam também em fonte de lucro para alguns e de escravidão para outros. As mulheres especialmente, tão desvalorizadas na estrutura da sociedade da época, tinham no sacerdócio nos santuários pagãos uma opção de mudança de status. Recebiam o respeito devido por serem sacerdotisas! Na verdade, o que estava por detrás daquele status era a exploração comercial de poderes atuantes naquela mulher – os quais Lucas, autor de Atos, deixa claro como provenientes do Diabo. O que existe, de fato, é a exploração a partir da fé – a instrumentalização da fé e da própria pessoa (como lemos nos vv.16 e 19).

A verdadeira questão é encoberta pela cantilena a respeito de “costumes tradicionais” que não poderiam ser trocados por outros, que não poderiam ser aceitos”, como vemos no v. 21. Precisamos atentar para o fato de que estruturas aparentemente não religiosas e aparentemente não demoníacas no nosso mundo secularizado substituem formas antigas de exploração e escravização de pessoas. Não sejamos ingênuos de que também “costumes tradicionais” em culturas ditas ingênuas e intocadas pelo “missionário cristão branco e explorador” não estão alheios ao pecado e à infelicidade, assim como à morte que vem como seu salário.  O evangelho de Jesus Cristo, porém, liberta e é o que acontece na ocasião, conforme o relato lido. O evangelho de Jesus questiona e transforma a cultura, os costumes tradicionais quando esses são, na verdade, formas de culto a ídolos, mais ou menos modernos, que levam ao aprisionamento. A prisioneira de Satanás, prisioneira do sistema tradicional de exploração foi liberta para uma nova vida. A mulher estava aprisionada, embora aparentemente livre!

Adiante, temos no relato homens aprisionados, mas que agem a partir da liberdade do Evangelho.

Prisioneiros, mas livres Servos de Cristo

A esperança do lucro dos exploradores estava desfeita, como diz o v. 19, costumes foram questionados e por isso a multidão se levanta contra os missionários. Claro que a oposição se levanta! Açoites e prisão! O carcereiro deveria guardar os prisioneiros, como ressalta o texto, “com toda a segurança” (v. 23). São levados, assim, para o cárcere interior e presos ao tronco (v. 24). O milagre fica tão evidente quanto evidente é a oposição sofrida por Paulo e Silas. São prisioneiros que agem, porém, com liberdade. Eles oram e cantam louvores a Deus e os demais companheiros de prisão escutam (v. 25). Não somente os companheiros de prisão escutam, como o próprio Senhor ouve a sua voz. O Senhor ouve e o milagre acontece! Um terremoto sacode os alicerces da prisão, as portas são abertas e as cadeias de todos são soltas (v.26).

Não bastasse o terremoto, outras coisas estranhas acontecem! Os prisioneiros não fogem! Se fazem servos de todos, mesmo sendo livres de todos. Essa é a marca “da Liberdade cristã”.  Tamanho sentimento de liberdade também não os faz aceitarem o tratamento injusto, a marca de bandidos que lhes seria dada ao saírem da prisão foragidos. É necessário que fique claro o que está, de fato, acontecendo! Claro que o carcereiro romano em Filipos não conhecia essa lógica! Não fazer corretamente o que seus senhores o tinham incumbido a fazer custaria sua vida e essa sentença de morte, sem precisar clamar por graça alheia, prefere, ele mesmo, executar. E assim, como diz o texto, “puxando a espada, ia suicidar-se” (v. 27).

O confronto com a nova lógica vivida por Paulo e Silas ainda na prisão – embora já livres – impacta a vida do carcereiro e faz com que pergunte o que deveria fazer para que fosse salvo. O convite é à fé no Senhor Jesus. Os costumes tradicionais romanos, numa união de exploração comercial e religião causam prisão e morte e não vida e liberdade. A paz romana somente aconteceria por meio da ameaça, da força da espada – a mesma que seria usada para dar fim, agora, à sua própria vida. Salvação viria a partir da fé – não daquela fé genérica que se descaracteriza em um acreditar vazio, como propagada pela mulher na beira do rio, de que existe um Deus altíssimo e existem pessoas que anunciam o caminho da salvação. A fé anunciada é a fé que Jesus é o Cristo, o Ungido de Deus, único caminho, único Senhor. No v. 32 vemos que Paulo e Silas pregam a Palavra ao carcereiro e aos de sua casa. Fé vem pelo ouvir a Palavra, como lemos nas palavras do próprio apóstolo Paulo em Rm 10.17. A verdadeira fé evangélica é seguida por uma mudança de atitude, faz surgir o serviço em amor, faz surgir o cuidado com o que a partir do milagre não e mais opositor, aprisionador, inimigo. Assim como a escravidão da mulher em Filipos não era apenas uma questão de ajustes em uma estrutura social opressora, mas de poderes ocultos –  de uma fé direcionada para um alvo errado – não dissociada mas justamente manifesta em uma estrutura social opressora, assim também a libertação em Cristo – a fé direcionada a um alvo certo – não acontece dissociada, mas se manifesta justamente em mudanças concretas, em novas relações de poder e novas estruturações de vida. Aquele que antes açoitava e aprisionava, agora cuida dos ferimentos. À fé segue-se um comprometimento com o corpo de Cristo, segue-se à entrada na comunidade: “foi ele batizado, e todos os seus” – como lemos no v. 33. À fé segue a comunhão de mesa e a alegria, como lemos no v. 34.  Conversão resulta em mudança de perspectiva, em cuidado, em comunhão, em alegria.

Conclusão

Que neste domingo Exaudi, tenhamos a certeza de que nosso clamor a Deus é ouvido e de que Ele continua o mesmo para libertar de poderes diabólicos com suas manifestações mais ou menos perceptíveis – de poderes diabólicos que costumam se apresentar a nós como “anjo de luz” (cf. 2Co 11.14). Que a Palavra de Deus nos conduza e nos sustente na verdadeira fé em Jesus Cristo, a uma lógica verdadeiramente evangélica, oposta à lógica deste mundo e que traz o seu impacto e faz perguntar pela salvação. Que a Palavra nos conduza à graça do Senhor Jesus, ao amor de Deus, o Pai e à comunhão no Seu Espírito. Amém.

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P.Dr. Vitor Hugo Schell

São Bento do Sul – Santa Catarina (Brasilien)

vhschell@gmail.com

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