Isaías 58.9b-14

Isaías 58.9b-14

Prédica para o 11º Domingo após Pentecostes – 21 de agosto de 2022 | A essência e a coerência da fé | Isaías 58.9b-14 |  Roger Marcel Wanke |

Introdução

Certa vez, ouvi um pregador dizer que a nossa época é repleta de religiosidade, mas pobre em fé. De fato, no Brasil cresce cada vez mais o número das religiões e o número de igrejas. Quase poderíamos dizer que o Brasil é um dos maiores “fabricantes de religião” do mundo. Contudo, o número crescente de igrejas no Brasil não significa, automaticamente, que a verdadeira fé no Deus vivo e revelado em Jesus Cristo tenha também crescido. Fé não é a mesma coisa que religião. E a fé cristã é totalmente diferente de qualquer religião.

Vivemos um fenômeno sociocultural e religioso por demais hedonista e individualista, o qual tem se inserido sorrateiramente também no contexto da comunidade cristã. A busca por felicidade, prazer e por interesses pessoais transforma a espiritualidade também em algo intimista e individualista. As pessoas consomem religião para si mesmas, ao invés de viverem a fé em favor das outras pessoas. Ritos e práticas religiosas são feitos com boas intenções, mas geralmente por medo de não serem abençoadas, o que leva à barganha com Deus, ou então à falsa religiosidade, uma vida de fé aparente, totalmente descomprometida com as pessoas em sua volta. É um “louvorzão” sem o rosto prostrado no chão. É um amar ao próximo como desencargo de consciência e não como encargo de uma essência diaconal. É um amor a Deus desvinculado do amor ao próximo, um amor ao próximo como a si mesmo, sendo esse mesmo um narcisista.

O texto previsto para a pregação do 11º Domingo após Pentecostes encaixa-se perfeitamente neste contexto. Ele é uma palavra de exortação, de correção e de promessa da parte de Deus ao Povo de Israel, cativo na Babilônia e se encontra no livro do profeta Isaías 58.9b-14. Destacam-se três aspectos importantes deste texto, que nos ajudam a refletir sobre a essência e a coerência da nossa fé:

1. O Senhor nos lembra do nosso pecado

O texto indicado para a pregação é, na verdade, a continuação de uma severa crítica que Deus está fazendo ao Povo de Israel, ainda exilado na Babilônia, mas prestes a retornar para Jerusalém. Israel estava lamentando, pois achava que Deus não lhes dava atenção, não reconhecia seus sacrifícios e práticas espirituais, principalmente, no que se refere ao jejum e à observância do sábado. Eles achavam ter jejuado em vão, já que para eles Deus não estava levando em conta os sacrifícios realizados.

Através do profeta, porém, Deus questiona a vida de fé do seu povo. Deus os faz ver que as práticas religiosas são de fato em vão, se elas não vêm acompanhadas da prática da justiça e pelo amor ao próximo. Por isso, Deus entra em diálogo com o povo mostrando o seu engano, o seu pecado. É interessante perceber, que Deus exorta o povo, destacando os dois maiores e recorrentes pecados do povo de Israel: a) A religiosidade vã e vazia e a injustiça social; b) A idolatria e a adoração a falsos deuses. Esses dois pecados, em toda a história do Povo de Israel, registrada no Antigo Testamento, levaram o povo a perder a sua essência, sua identidade, bem como os fez viver uma fé incoerente com a salvação que eles haviam experimentado.

Religiosidade vazia e idolatria andam sempre juntas. Elas são expressões da incansável busca do ser humano pelos seus próprios interesses, prosperidade, e bem-estar pessoal. A consequência é certa! O amor ao próximo é esquecido e o amor a Deus se torna em fingimento. A injustiça social cresce e a barganha diante de Deus se torna a regra. Mas Deus não tolera esse tipo de religiosidade. Por isso, ele vem por meio do profeta e fala ao povo, denunciando o seu pecado, exortando-o e corrigindo-o, para que possa viver a partir da essência e da coerência da fé.

Deus nos lembra do nosso pecado, justamente, porque a fé se manifesta de forma prática em favor dos outros. A verdadeira espiritualidade se manifesta na prática daquilo que me faz ver o outro. Eu não sou o centro da minha fé. O cristão não serve a si mesmo. Ele também não vive para si mesmo. A partir do amor a Deus o foco é o meu próximo. João, em sua primeira carta, vai dizer exatamente isso: “Se alguém disser: Amo a Deus, e odiar a seu irmão, é mentiroso, pois aquele que não ama a seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê” (1 João 4.20). Aqui fica claro, que o amor a Deus, marcado pela busca diária do Senhor, pelo conhecer os seus caminhos e por uma vida que agrada a Deus, também se manifesta com a prática da justiça e do direito em favor de pessoas, a quem, por interesses próprios, lhes são negados os direitos e a justiça.

A palavra de Deus nos acusa! Ela nos questiona, se estamos amando a Deus e ao próximo a partir dos interesses e da intenção amorosa e graciosa de Deus. A exortação de Deus é para mim pessoalmente, mas também para nós como comunidade. O que tem nos motivado a celebrar semanalmente nosso culto, participar nos diferentes grupos de trabalho da comunidade? São os nossos próprios interesses? Servimos a Deus para nos auto promover na comunidade? O que motiva a nossa fé?

2. O Senhor dá sentido à nossa vida de fé

O texto deixa claro que Deus não é contra o jejum, muito menos contra o dia de descanso. Deus é contra uma fé de aparência, intimista, sem compromisso com as pessoas. Por isso, Deus ensina novamente o seu povo a viver a essência e a coerência da fé. Podemos dizer que Deus corrige práticas importantes da espiritualidade do povo de Israel, no sentido de fazê-los enxergar a finalidade correta da prática da fé. O problema não era o jejum, nem o sábado em si. O problema era a forma como essas práticas espirituais estavam sendo vistas e realizadas pelo Povo de Israel.

Deus resignifica o jejum. Ao invés de ser praticado pelos seus próprios interesses, ou simplesmente como um sacrifício meramente humano, Deus fala que o verdadeiro jejum é aquele que considera as pessoas em necessidades, ou seja, que se reparta o pão com o faminto, que se acolha em casa o estrangeiro, que se dê roupas aos que estão nus. O texto da pregação inicia exatamente no ponto em que Deus está dando um novo significado para a prática do jejum. O mesmo é feito em relação ao guardar o sábado. Assim como o jejum estava sendo feito por causa dos próprios interesses e negócios, da mesma forma o sábado estava sendo guardado, para satisfazer os próprios interesses e desejos. O dia santo ao Senhor, que era para ser um dia de festa e descanso e para ser vivido em favor do próximo, estava sendo ocupado como dia de trabalho, dia de negócios, dia de conversa jogada fora. O que era um tempo de buscar o Senhor, tornou-se rival de Deus, ocupando o lugar do próprio Deus na vida do povo. Assim, o guardar o sábado estava se tornando em transgressão do primeiro mandamento.

No Novo Testamento, Jesus também fez várias críticas e advertências tanto em relação à prática do jejum (Mt 6.16-18; 9.14-17) como também em relação à observância do sábado (Mc 2.23-28). O texto de Lucas 13.10-17, previsto para a leitura bíblica deste culto, deixa essa advertência bem evidente. Jesus, muitas vezes, precisou se ocupar com a discrepância e incoerência entre a vida de fé e a justiça da fé dos religiosos e do povo de sua época. A famosa frase do profeta Oseias: “Misericórdia quero e não sacrifícios” é dita por Jesus em situações em que a essência do Evangelho é confundida com rituais vazios e a coerência da fé é anulada pela injustiça social dos que se consideravam guardiões da justiça e da fé verdadeira.

Hoje, não estamos livres de cair na mesma tentação e prática incoerente de fé do povo de Israel. Por isso, precisamos refletir: O que Deus precisa resignificar na nossa vida? Para o que da nossa espiritualidade Deus precisa dar um novo sentido? Hoje se percebe muitas pessoas nas igrejas que são batizadas, mas não vivem o seu batismo. São confirmadas, mas não participam da vida comunitária. Querem visita pastoral, mas não desejam viver a fé em comunidade. Buscam pela Ceia do Senhor, mas não querem perdoar, nem buscar pelo perdão. Após a pandemia, inclusive, muitas pessoas, infelizmente, estão preferindo se isolar. Muitos acham que não precisam mais vir aos cultos, pois agora tudo é online. Por causa dos seus próprios interesses, abandonam a vida e a comunhão na comunidade.

O que Deus precisa dar novo sentido em sua vida de fé? Sua fé o faz enxergar as necessidades das pessoas ao seu redor? Durante a pandemia, muitas pessoas tiveram que abrir mão de muitas coisas, não apenas para poder sobreviver, mas também para poder ajudar a quem teve necessidade. Muitas comunidades estiveram engajadas em ações diaconais em favor de pessoas, que haviam perdido seus empregos, que haviam perdido familiares, que haviam ficado doentes. Em muitos lugares, a igreja cristã pôde dar o seu testemunho, não apenas em palavras, mas também em ações. Não apenas orando e intercedendo por pessoas em vulnerabilidades, mas também auxiliando concretamente, assim como o texto fala: dando alimento ao faminto, roupa ao que está nu, consolo aos que choram, esperança ao desesperado.

Quando o povo de Deus conhece a sua essência, ele se torna em “serviço essencial” num mundo marcado pelo sofrimento. Quando o povo de Deus sabe que o amor ao próximo é inerente ao amor a Deus, ele se torna coerente em seu testemunho, em sua prática da fé.

3. O Senhor tem promessas para a sua Igreja

O texto termina com a expressão: “porque a boca do Senhor o disse”. Ao que se refere essa frase dita pelo profeta? O que afinal a boca do Senhor falou? Apesar de haver severas críticas de Deus contra uma religiosidade vazia e a falta de justiça na vida do povo, Deus não deixa esse povo sem perspectivas. Após reconhecer o seu pecado, ser exortado e corrigido pelo Senhor, o povo recebe de Deus promessas para a sua vida. Promessa não é moeda de troca. Mas é a bênção de uma vida vivida na presença do Senhor. É consequência de um relacionamento vivo com Deus. Promessa é o que Deus faz em favor do seu povo. A fé é a resposta do seu povo ao que Deus lhe fez.

A Bíblia não se cansa de mostrar que o nosso Deus é um Deus de promessas. Suas promessas são promessas de vida e salvação. As promessas de Deus nos animam a servi-lo e a servir as pessoas com os nossos dons, nossos recursos, com tudo o que temo e tudo o que somos, com a nossa vida. Quais são as promessas de Deus destacadas no texto? Podemos falar de promessas já nos versos anteriores ao texto indicado para a pregação. Todas elas, de forma muito interessante, apontam para o agir salvífico de Deus. Elas já haviam sido dadas ao povo de Israel muito tempo antes. Não se trata de novas promessas, mas das mesmas e antigas promessas que são dadas de forma nova ao povo.

Elas iniciam apontando para a luz que brilha nas trevas. Trata-se aqui da tarefa missionária do Povo de Israel, de ser luz para as nações. Essa luz não é algo próprio do povo de Israel. Mas o povo deve refletir a glória do Senhor (v.8). Ao praticar o que hoje chamamos de diaconia, o povo de Israel, além de fazer o verdadeiro jejum, que Deus espera, dá testemunho da palavra de Deus no mundo, reflete a glória de Deus, evidenciando a presença de Deus por meio da presença da comunidade de fé no mundo. No v.11 encontramos novas promessas de Deus ao povo. Elas lembram do agir salvífico de Deus por ocasião da saída do Egito. Deus vai continuar sendo o guia do povo. Assim como já havia guiado o povo do Egito para a Terra Prometida (Êx 16-17), Deus vai guiar novamente o Povo de Israel agora da Babilônia para a Terra Prometida. Deus vai continuar sustentando o povo. Assim, como já havia sustentado e saciado o povo nos lugares desérticos. Deus vai fortificar os ossos, ou seja, vai fortalecê-los para a caminhada. O povo será como um jardim regado e um manancial, ou seja, uma fonte de água, que jamais secará. Essas promessas de Deus certificam o povo de que ele vai cumprir sua Palavra dita pelos profetas. É por isso, que o povo pode auxiliar os necessitados. Quem já foi guiado e sustentado por Deus ao caminhar no deserto, pode ser luz e fonte de água e sustento para quem precisa.

No v.12 encontramos mais uma promessa de Deus ao seu povo. Os filhos irão restaurar as ruínas da cidade de Jerusalém. Trata-se da promessa do retorno do povo exilado na Babilônia para a cidade de Jerusalém, que será reconstruída. A promessa de Deus aponta para as novas gerações. É uma promessa de recomeço, de esperança, de vida. O texto termina com mais uma promessa de Deus ao seu povo. São três aspectos prometidos ao povo, que guardar o Sábado como prevê o terceiro mandamento: a) O povo se deleitará no Senhor, isto é, o Senhor será uma fonte de alegria para o povo. A alegria é sempre fruto da salvação; b) O Senhor fará o povo cavalgar sobre os altos da terra. A ideia por trás desta imagem é a figura do rei, que cavalga como soberano sobre os reinos da terra. A NTLH traduz: “eu farei com que vençam todas as dificuldades”. Essa é uma das promessas mais especiais da Bíblia; c) O Senhor sustentará o povo com a herança dada a Jacó. Eles serão sustentados a partir do que produzirem na terra para a qual estão indo novamente. Aqui há uma menção clara da posse da terra prometida, relatada no final do Pentateuco e nos livros de Josué e Juízes. O v.14 conclui com a confirmação do Senhor, que afirma e confirma todas as promessas: “porque a boca do Senhor o disse”. Se o Senhor disse, então está falado! Está garantido! É válido! Vai se cumprir! As antigas promessas de Deus continuam valendo. O Senhor as renova para dentro da nova situação do seu povo. Sua palavra não muda, mesmo que a situação do seu povo mudou várias vezes. Quais são as promessas de Deus que a nossa comunidade está experimentando? Estamos vivendo a partir das promessas de Deus, ou a partir de um relacionamento de barganha com Deus?

Concluindo, o que podemos perceber é que o pecado pode separar o povo de Deus, mas não separa Deus do povo (Isaías 59.2). Deus busca o seu povo, mesmo quando este o busca apenas por interesses ou até mesmo em vão. Deus evangeliza o seu povo novamente. Deus anuncia um novo Êxodo, uma nova entrada na terra prometida! Deus lhes faz valer a sua Lei, mesmo que aqui de forma invertida, falando, primeiramente, do amor ao próximo e da prática da justiça e, depois, falando do amor a Deus e do descanso que o Sábado do Senhor traz para toda pessoa que confia nele. O jejum e o sábado são duas formas legítimas de amar e servir a Deus e de amar e servir o próximo, como a si mesmo, sem se preocupar com os próprios interesses (v.3, 13), porque a boca do Senhor o disse.

Que possamos amar a Deus acima de tudo e ao próximo como a nós mesmos, não a partir dos nossos interesses, mas a partir do amor incondicional de Deus. Que o Senhor assim nos ajude. Amém!

P. Dr. Roger Marcel Wanke

São Bento do Sul – Santa Catarina (Brasilien)

Roger.wanke@flt.edu.br

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