Lucas 19.1-10

Lucas 19.1-10

Prédica para o 21. Domingo após pentecostes | 30 de outubro de 2022 | Texto bíblico: Evangelho de Lucas 19.1-10 | Roberto Zwetsch |

Prezadas amigas e amigos, comunidade de fé aqui reunida,

Saudações com a paz de Deus que excede todo entendimento e nos irmana na comunhão e na mesma fé.

Após a leitura do evangelho de hoje, algumas pessoas poderão pensar consigo mesmas: “Ih, novamente essa história do cobrador de impostos que se converte!”. Pois é, a narrativa de Zaqueu e seu encontro inusitado com Jesus é bem conhecida. Ela é exclusiva de Lucas e tem algumas características próprias desse evangelista. Lucas é conhecido por exaltar as pessoas pobres e fazer duras críticas aos ricos. Mas neste caso ele nos surpreende, pois coloca em cena um cobrador de impostos, na verdade, um chefe de cobrador de impostos, isto é, judeus que serviam aos romanos e eram odiados por sua gente. Quem servia a estrangeiros se tornava impuro e passava a ser desprezado, principalmente pelos judeus que se consideravam justos, seguidores da lei e sem pecado. A narrativa da parábola do fariseu e do publicano um pouco antes coloca em cena – no templo – justamente um desses puros diante de um cobrador de impostos, um pecador como Zaqueu. Temos então aqui uma certa continuidade na temática.

Nessa parte do evangelho de Lucas, Jesus está fazendo sua caminhada rumo a Jerusalém e nós já sabemos o que vai lhe acontecer lá. Lucas destaca nesses textos o fato de que Jesus estabelece um confronto com um sistema religioso, político e econômico que marginaliza e sacrifica pessoas. Ele anuncia o reino de Deus como um programa messiânico que privilegia não as assim entendidas “pessoas de bem”, justas, piedosas, corretas. Pelo contrário, no reino de Deus está reservado lugar especial para gente pobre, mendigos, prostitutas, gente de má fama, marginalizada, pessoas com deficiência, gente sem valor. Uma inversão total de expectativas!

Como entender essa narrativa de um encontro pessoal entre um sujeito como Zaqueu e esse Jesus, profeta de Nazaré? Parece uma narrativa fora daquele roteiro que a gente vinha acompanhando até aqui no evangelho. Vejamos se a gente pode compreender melhor lendo atentamente o texto. Ele tem duas partes e uma conclusão como se fosse a moral da história.

  1. Nos versos 1 a 4 a figura central é Zaqueu, o tal cobrador de impostos, que vivia muito bem, pois aprendeu a extorquir a sua gente. Os romanos habilmente não cobravam diretamente os impostos de ocupação. Arrendavam a cobrança ao pessoal da terra, gerando com isso um conflito interno permanente no país. Mas quem assumia a ingrata tarefa, para ganhar mais elevava as taxas e com isso gerava ódio na população. Não por acaso, esses traidores consentidos de cima para baixo eram colocados na mesma categoria de pecadores, prostitutas e pagãos. Conviver com essa gente era condenado sumariamente e causa de impureza ritual grave. Ocorre que, olhando por outro lado, este sistema podia ser considerado uma enorme hipocrisia, pois as autoridades judaicas aceitaram obrigatoriamente o sistema como parte da invasão e opressão romanas. E o sinal dessa hipocrisia era a terceirização da cobrança. Hoje em dia sabemos muito bem o que significa essa terceirização no Brasil e em muitos países. Quando se privatiza empresas públicas como serviços de água, energia, distribuição de gás e combustíveis, favorecendo geralmente empresas estrangeiras, a conta aumenta e quem paga são sempre os contribuintes, os que necessitam desses serviços básicos, muitos milhões de pobres E as autoridades e parlamentares que decidiram por esses esquemas fraudulentos hipocritamente dizem que isso foi necessário para acabar com a corrupção. Ora, que corrupção é essa? Voltando ao texto, percebe-se que nessa narrativa de Lucas muita gente logo tenta espiritualizar em função da moral da história, e esquece de atentar para o realismo do que se passa entre Zaqueu e Jesus. Pois a transformação que o cobrador de impostos conheceu no encontro com o mestre teve grande repercussão na vida dele, da casa, isto é, da família ampliada e da sociedade na qual ele vivia.
  2. Quando Jesus caminhava pelas ruas de Jericó, uma cidadezinha com certa importância, pois tenha comércio forte e próspero, se depara com uma cena estranha que lhe chamou a atenção. Lucas usa de um típico humor judaico aqui. Diz que Zaqueu era de baixa estatura, mas tinha curiosidade de conhecer mais de perto aquele mestre nazareno e por isso trepa numa árvore. Havia muitas árvores nos caminhos de Jericó. Mas como pode um cobrador de impostos agir como se fosse criança? Bem, lá estava ele empoleirado quando … Ao passar pelo local, Jesus supreendentemente olha para cima, vê Zaqueu e fala para ele: Desce depressa, pois me convém hoje ficar em tua casa. Tudo muito estranho, pois conforme a lei da hospitalidade que vem do AT (G. 18.1ss) quem devia de convidar era Zaqueu, mas aqui foi Jesus quem se convidou. E temos outra surpresa fora do comum: o homem rico, mas impuro, desce depressa e o recebeu com O impacto dessas surpresas causam murmuração entre o povo e Jesus é alvo de uma grave acusação: ele se hospeda com um homem pecador!
  3. Mas as surpresas não param por aí. Na sequência não ouvimos mais nenhuma palavra de Jesus. Ele segue seu anfitrião, o acompanha até sua casa e do que escutamos não se depreende de Jesus nenhuma censura moral, sermão ou reprimenda sobre o pecador Zaqueu. Jesus sem falar nada corrói o falso moralismo daquela sociedade que se julgava melhor do que os cobradores de impostos. Assim, o que a narrativa nos traz é antes uma ação, uma decisãocompletamente inesperada por parte de Zaqueu: Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e se nalguma cousa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais. Parece que Zaqueu simplesmente pirou, exagerou, ultrapassou todas as medidas. Pois Jesus não dissera nada a ele sobre esses haveres. Fico pensando que Zaqueu perdeu praticamente tudo com esse atitude de restituição. E no texto não se escuta nada sobre alguém da família ou da casa ter reagindo contra. Mais uma observação: percebam que o texto não diz nada do que Jesus e Zaqueu conversaram no caminho ou em casa, ou o que se passou na consciência ou coração daquele homem. Lucas simplesmente diz que Zaqueu recebeu Jesus com Palavrinha chave nesse evangelho que desde o início vinha afirmando: com Jesus temos uma boa nova de grande alegria (2.10). Por isso o que podemos dizer com segurança é que esta decisão de Zaqueu, isto é, repartir os seus bens e restituir quatro vezes mais a quem possivelmente tenha defraudado, mesmo sendo incomum e até exagerada, foi algo que resultou de sua alegria, de sua grande alegria ao se encontrar com o mestre de Nazaré e poder recebê-lo em sua casa. Sem dúvida alguma, é uma decisão única e incomum!
  4. Só nesse momento, após ouvir o que o seu anfitrião acabara de anunciar, Jesus fala. E sua palavra traz algo que também nos desafia: Hoje houve salvação nesta casa, pois também este é filho de Abraão. Isto significa que ser filho de Abraão para Zaqueu foi ser reincorporado na comunhão dos filhos e filhas de Deus. E como noutras passagens, também aqui temos outro exemplo de uma transformação que vai contra as leis de pureza religiosa e das diferenças sociais e políticas que separavam os pecadores dos justos piedosos daquela sociedade. Jesus abra espaço novo para um recomeço, algo inusitado naquele contexto de regras religiosas estritas e hipócritas.
  5. Entendo que essa narrativa singular nos dá a conhecer, mais uma vez, a ousadia de Jesus, pois ele arrisca restaurar a vida de um corrupto, de um aproveitador, tornando-o uma pessoa justa e alegre. Mas tem um detalhe muito importante que temos de atualizar para nós. Lucas o escondeu de nós com uma palavra. Ao contrário do que muito se fala nas nossas igrejas e na piedade cristã bem conhecida, a presença salvadora ou transformadora de Jesus não acontece apenas na interioridade de Zaqueu, que nós não vemos. Ela se dá na casa. Jesus diz com toda a clareza: hoje houve salvação nesta casa! Isso quer dizer que a experiência da salvação ou da conversão, se quiserem, abrange toda a família e as relações vivenciais de Zaqueu. E se podemos tirar algumas conclusões adiante, dá para afirmar que essa salvação chegou até os pobres defraudados e extorquidos por Zaqueu, beneficiados agora por uma prática de justiça relacional inesperada e libertadora.
  6. Ora, esta salvação acontece como resultado de uma experiência de alegria num encontro inesperado com Jesus, aquele mestre que vem da pequenina Nazaré. Trata-se de uma salvação que abrange a casa toda pois transforma a vida de Zaqueu e de sua família, restituindo-lhe uma dignidade que ele desconhecia, portanto, gratuita e cheia de misericórdia. Salvação aqui é uma mudança holística, que repercute na vida integral e relacional da pessoa e de toda a família. Fico pensando nos grupos do Amor Exigente, um projeto que existe há anos no Brasil e que reúne uma vez por semana sistematicamente dograditos e seus familiares para que essas pessoas dependentes de drogas e escravas de algum vício encontrem novo rumo para suas vidas. O Amor Exigente não trabalha com indivíduos, mas com o grupo familiar, pois descobriu que uma pessoa sozinha, por mais cheia de boa vontade, não se liberta sozinha. Ela precisa da comunhão familiar, do companheirismo do grupo maior que – esse sim – lhe infunde a força necessária para dizer: mais 24 horas livre da droga, livre do álcool, livre daquilo que me fez escravo. É isto: salvação é experiência de vida nova experimentada na casa, no grupo, na comunhão dos iguais, dos pecadores que se encontraram com a alegria de um Jesus que lhes entende a mão sem cobranças, mas amorosamente, revelando que Deus é compaixão, é acolhimento, é libertação! No final da narrativa temos uma conclusão do evangelista que novamente nos coloca diante das típicas inversões de Jesus: o Filho da humanidade veio para buscar e salvar quem estava perdido. Pois quem se exalta será humilhado, mas quem se humilha, será exaltado (Lucas 18.14).

O encontro com Jesus no caminho e na casa é algo transformador. Ele nos liberta das falsas premissas, das nossas ilusões de pureza e santidade. Ele nos ajuda a elaborar nossas fraquezas e a nos livrar de todos os preconceitos contra as pessoas que nos cercam, especialmente, as que consideramos mais desprezíveis. Deixemo-nos apanhar nessa rede de alegria, aceitação e salvação. Nossa vida será outra, bem diferente. E nossa riqueza estará depositada noutros valores e não em nossos bens ou propriedades. Quem está disposto a dar esse passo? Pensem nisso, enquanto lhes transmito a paz de Deus, o amor de Cristo e a consolação dinâmica do seu Espírito libertador! Amém


Pastor Dr. Roberto E. Zwetsch

 Pelotas, Rio Grande do Sul (Brasilien)

rezwetsch@gmail.com

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